sábado, 16 de abril de 2022

OS CÍRIOS SÃO MANIFESTAÇÕES RELIGIOSAS DE FORTE CARIZ POPULAR, POIS TÊM A SUA GÉNESE NA NECESSIDADE SENTIDA PELAS POPULAÇÕES MAIS CARENCIADAS E MAIS SUJEITAS ÀS FORÇAS DA NATUREZA DE PEDIREM A AJUDA DIVINA PARA AS SUAS AFLIÇÕES E, POSTERIORMENTE, PAGAREM AS PROMESSAS QUE NESSE SENTIDO TENHAM FEITO - PRIMEIRA PARTE

 

OS CÍRIOS SÃO MANIFESTAÇÕES RELIGIOSAS DE FORTE CARIZ POPULAR, POIS TÊM A SUA GÉNESE NA NECESSIDADE SENTIDA PELAS POPULAÇÕES MAIS CARENCIADAS E MAIS SUJEITAS ÀS FORÇAS DA NATUREZA DE PEDIREM A AJUDA DIVINA PARA AS SUAS AFLIÇÕES E, POSTERIORMENTE, PAGAREM AS PROMESSAS QUE NESSE SENTIDO TENHAM FEITO - SEGUNDA PARTE

Círio dos Saloios ao Santuário de N. Senhora da Pedra Mu ou Mua ou do Cabo Espichel

O Círio à Nossa Senhora do Cabo que percorre várias paróquias ou freguesias dos concelhos de Cascais, Sintra, Oeiras, Mafra, Loures e Lisboa (Círios dos Saloios) é uma tradição secular e constitui a última reminiscência e longínqua memória do acontecimento geográfico-natural que tradicionalmente se designa pelo afundamento do lendário continente Atlante ou Atlântida (o “País de Mu”).

Este círio é partilhado desde o século XV pelas populações costeiras entre o Cabo Espichel e o Cabo da Roca, como memória daquele trágico acontecimento de que resultou a submersão de centenas de quilómetros de zona costeira europeia por uma onda gigante, igualmente com profundas consequências no Mar Mediterrâneo, há mais de 10.000 anos.

O Círio à Nossa Senhora do Cabo começa por ter um cariz puramente popular, espontâneo na sua realização, onde a Igreja tem uma intervenção reduzida e as instituições laicas nula, o designado Círio Popular dos Saloios à Senhora de Mu.

Quando a Casa Real passou a valorizar a realização do círio a que deu apoio financeiro, chegando mesmo a participar no mesmo no tempo do rei D. João V, este passou a designar-se Real Círio dos Saloios à Senhora de Mu, passando o Povo a ter uma posição subalterna, seguindo no fim do desfile, depois da Realeza e do Clero.

O Real Círio organiza-se da seguinte forma:

Quem puxa o Círio” é o principal homem do lugar

Seguem-se os mordomos (da família real)

Depois, o Juiz do Círio com a bandeira

De seguida os Festeiros

A Berlinda (1) com a image m de Nossa Senhora do Cabo, o capelão e o sacristão

Ao Anjos e os Pajens que “deitam” ala Loas

O Povo”

Mais tarde passou a ter menos pompa, especialmente, a partir de 1834, data da derrota miguelista. Actualmente, algumas das freguesias do distrito de Lisboa ainda comemoram esta festividade, mas nem sequer já se dirigem ao Santuário de Nossa Senhora do Cabo, fazendo a transferência da imagem da Senhora do Cabo no limite das respectivas freguesias.

Por razões políticas a realização do Círio ao Santuário de Nossa Senhora do Cabo esteve suspensa entre 1910 e 1926. O mesmo aconteceu entre os anos de 1976 e 1980, quando foi retomada a sua realização.

Existem registos de que seriam inicialmente 30 os círios que constituíam o giro à Senhora do Cabo. No século XVIII foram reduzidos para 26 conforme se encontram enumerados no livro sobre o Santuário de Nossa Senhora do Cabo Espichel, em edição própria do Santuário. Em tempos recentes, ano de 2004, fixaram-se em 25 as Freguesias que constituem o giro do Círio dos Saloios.

O Círio dos Saloios está no Santuário de Nossa Senhora do Cabo no último domingo de Setembro, data em que se continua a realizar.

O primeiro Círio dos Saloios de que há notícia se ter realizado foi o da Paróquia de São Vicente, de Alcabideche, no ano de 1431.

(01) S. Vicente, de Alcabideche (1431)

(02) S. Romão, de Carnaxide, hoje Linda-a-Velha (1432)

(03) S. Julião, do Tojalinho, hoje Tojal (1433)

(04) S. Pedro, de Penaferrim de Sintra (1434)

(05) Nossa Senhora da Misericórdia, de Belas (1435)

(06) Santa Maria, de Loures (1436)

(07) S. Lourenço, de Carnide (1437)

(08) Nossa Senhora da Purificação, de Bucelas (1438)

(09) S. Pedro, de Barcarena (1439)

(10) S. Pedro, de Lousa (1440)

(11) S. Silvestre, de Unhos (1441)

(12) Santo Antão, do Tojal (1442)

(13) Nossa Senhora da Purificação, de Oeiras (1443)

(14) Nossa Senhora do Amparo, de Benfica (1444)

(15) S. Domingos, de Rana (1445)

(16) S. João, das Lampas (1446)

(17) S. Lourenço, do Arranhol, hoje Arranhó (1447)

(18) Nossa Senhora da Purificação, de Montelavar (1448)

(19) Nossa Senhora de Belém, de Rio de Mouro (1449)

(20) Nossa Senhora da Ajuda, de Belém (1450)

(21) Ascensão e Ressurreição, de Cascais (1451)

(22) Santíssimo Nome de Jesus, de Odivelas (1452)

(23) S. Martinho, de Sintra (1453)

(24) Santo André, de Mafra (1454)

(25) S. Pedro, de Almargem do Bispo (1455)

(26) Santo Estevão, das Galés (1456)

(27) Nossa Senhora da Conceição, da Igreja Nova (1457)

(28) São João Degolado, de Terrugem (1458)

(29) S. Saturnino, de Fanhões (1459)

(30) Santa Maria e S. Miguel, de Sintra (1460)

No decorrer do século XVIII deixaram de se realizar regularmente os Círios dos Saloios de:

Nossa Senhora da Purificação, de Bucelas, em 1709

S. Silvestre, de Unhos, em 1711

S. Lourenço, de Arranhó, em 1716

Santo André, de Mafra, em 1722

Do mesmo modo não se realizou na última década o Círio dos Saloios do Santíssimo Nome de Jesus, de Odivelas, em 2004 pelo que o ciclo do giro do Círio dos Saloios ficou reduzido a 25 anos.

Em data anterior a 1755 foi construída na Banática, a expensas de um devoto, a Ermida de Nossa Senhora do Cabo, na Quinta de Domingos da Costa e Almeida, onde pernoitava a imagem do Círio dos Saloios quando ele no seu percurso desembarcava na Margem-Sul. Esta Ermida terá sido destruída pelo Terramoto de 1755.

Há notícia, igualmente, de que vinha um Círio de Sobral de Monte Agraço que pernoitava no Monte de Caparica, chegando num sábado a caminho do Cabo Espichel, passando no regresso na segunda-feira seguinte.

No Círio à Nossa Senhora do Cabo realizado no Ano da Graça de 1770, dando nota da importância nacional que esta peregrinação já tinha conseguido, participou pela primeira vez a família real, ordenado pelo rei Dom José I, tendo sido o juiz da festa seu neto o Príncipe Dom José.

Nesse ano existem registos que houve festa rija no Terreiro do Cabo Espichel, com um grande arraial, três tardes de touros tendo culminado com um bodo de dezasseis bois assados no local por dádiva do Rei.

A imagem da Virgem foi transportada no percurso entre Porto Brandão, onde desembarcou de uma galeota real, até ao Santuário do Cabo Espichel numa viatura de aparato religioso, construída para o efeito com trabalho português, especialmente, de marcenaria.

O Círio passou, então, a ser conhecidos como Círio Saloio, Círio Real, Círio do Termo ou Círio do Bodo.

Em 1784 o Grande Círio Real teve a participação da Rainha Dona Maria I, sendo juiz da festa o Infante Dom João, o futuro rei de Portugal Dom João VI e partiu da Capela Real do Palácio de Queluz até Lisboa, onde pernoitaram. Seguiram, depois, para Belém (ou Restelo = Venusta Estrela) onde os mordomos e festeiros atravessaram o Rio Tejo num bergantim real até Porto Brandão onde rezaram na Igreja de São Luís de França (2) (por alguns estudiosos confundida com a Ermida de São Luís de França, da Quinta de Monserrate, na Charneca de Caparica) a que se seguiu na Fonte Santa um banho lustral purificador. Chegado ao “Monte Sagrado”, Monte Pio de Santa Maria da Caparica, o Círio deteve-se no Largo da Torre do Conde [hoje Largo Bulhão Pato] antes de se dirigir ao Largo de Nossa Senhora do Monte. A partir deste local seguiu em forma processional de Círio até à Ermida e São Macário, na Quinta do mesmo nome, onde os romeiros pernoitariam “para dar lugar ao transporte de todo o estado que há-de servir a Senhora, ou já pelo Caminho, ou no Sítio, seguindo depois para os lugares do Pinheiro (onde é hábito descansarem) e Cazaes [hoje Casais da Azóia], até ao Santuário de Nossa Senhora do Cabo onde estavam no último domingo de Setembro.

O “Caminho” à saída de São Macário e passado que eram os Casais da Charneca, seguia por caminhos através da mata [aproximadamente onde hoje se situa a Azinhaga dos Círios] atravessando o Pinhal do Rei, o Pinhal da Aroeira, o Pinhal da Apostiça e o Pinhal do Arneiro até ao citado lugar do Pinheiro, para sul da Lagoa.

Era acompanhado por dezenas de trombeteiros e de timbaleiros, mais de 220 soldados de cavalaria e levava os anjos S. Miguel, S. Gabriel, S. Rafael e S. João Evangelista. A imagem era transportada num coche puxado por seis cavalos.

O regresso era feito por percurso semelhante, sendo cantadas loas e por vezes feitas pernoitas para descanso nas igrejas, capelas e ermidas existentes no caminho.

Até ao ano de 1887 o Círio à Nossa Senhora do Cabo saía na 3ª feira anterior à 5ª feira da Ascensão, dia da Espiga, da Igreja de Nossa Senhora das Dores, em Belém, em cortejo de galeotas, bergantins e faluas que atravessavam o Rio Tejo até Porto Brandão.

Depois de visitar algumas capelas da Margem-Sul, especialmente as existentes na Banática, na Caparica e em Costas de Cão dirigia-se pelos caminhos das matas – Pinhal do Rei (Mata dos Medos), Pinhal da Aroeira, Pinhal da Apostiça e Pinhal do Arneiro - até ao Santuário do Cabo Espichel.

A partir de 1893, devido à pouca afluência de romeiros ao Cabo e ao desinteresse da família real, foi necessário tomar novo compromisso, onde se consignou que os festeiros se limitariam a levar a imagem peregrina de Freguesia em Freguesia sem deslocação ao Cabo Espichel, salvo no início de cada Giro, com a entrega da imagem da Freguesia de Santa Maria e S. Miguel (Sintra) à Freguesia de Alcabideche. A partir deste ano a imagem peregrina nunca mais voltou ao Cabo, adulterando o ritual primitivo, por ela passar directamente de Freguesia para Freguesia.

Círio Saloio a N. Senhora do Cabo de Santa Maria de Loures – 6º Círio do 23º Giro Tradicional

No ano de 2017, nos dias 25 e 26 de Março, o Círio de Santa Maria de Loures retoma a tradição interrompida em 1893, ano a partir do qual a imagem peregrina nunca mais voltou ao Cabo, adulterando o ritual primitivo, por ela passar directamente de Freguesia em Freguesia. De Santa Maria de Loures a imagem peregrina não vem ao Santuário de Nossa Senhora do Cabo desde 1887.

No primeiro dia: Saída da Igreja de Loures a pé, passagem por Odivelas, Carnide, Benfica, almoço na Mata de Monsanto, Belém. Barco para a Trafaria. Continuação a pé pela Costa da Caparica, Pera, Funchalinho, Convento dos Capuchos, Vila Nova da Caparica, descida até à ribeira (junto ao local onde existiu o Convento de Nossa Senhora da Rosa), entrando na Charneca de Caparica pelo eixo dorsal viária, a antiga Estrada Real, depois de terem inflectido pelas rua e azinhaga dos Círios, continuando até ao pavilhão do Vitória Clube Quintinhas, onde os peregrinos jantam e pernoitam.

Os peregrinos do Círio dos Saloios de Loures (2019) em terras de Charneca

No segundo dia: Saída da Charneca a pé, passagem por Aroeira, Lagoa de Albufeira, Alfarim, Azóia e chegada ao Santuário do Cabo Espichel para almoço, seguido da Missa no Santuário.

A pernoita na Charneca (mais tarde Charneca de Caparica) respeita a tradição pois era nas suas quintas - Quinta de São Macário, Quinta da Regateira, Quinta de Monserrate - que os peregrinos do clero e da nobreza pernoitavam, enquanto o povo se acomodava nas instalações das quintas - nas abegoarias, nas adegas ou nas casas de trabalho.

Na Charneca, vindos da Costa quando o barco os deixava na Trafaria ou do Monte quando desembarcavam em Porto Brandão, percorriam a Estrada Real, depois Estrada Distrital e mais tarde EN377 e entravam nos caminhos da Mata onde ela começava a partir do Mário Casimiro.

Os peregrinos do Círio dos Saloios de Loures (2019) na rua do Círio (Charneca de Caparica)

Antes do repasto da noite foi celebrada missa pelo padre Francisco da paróquia de Santa Maria de Loures nas instalações multiusos do Vitória Clube Quintinhas.

Nas saudações de boas-vindas usaram da palavra o secretário do Executivo da Junta de Freguesia António Faustino e o presidente do Vitória Clube Quintinhas José Simão. Victor Reis presidente da Assembleia de Freguesia fez um breve historial da participação da Charneca de Caparica no Círio dos Saloios no decorrer dos séculos.

O padre Francisco agradeceu todo o acolhimento que apelidou de excelente e carinhoso e ofereceu aos representantes das entidades de acolhimento uma recordação da Peregrinação.

Na madrugada seguinte os peregrinos iniciaram a segunda jornada do Círio dos Saloios a Nossa Senhora do Cabo num percurso até ao Cabo Espichel, pela Mata dos Medos, Herdade da Apostiça e Lagoa de Albufeira.

As Confrarias de Nossa Senhora do Cabo Espichel

Há notícia de que a primeira Confraria de Nossa Senhora do Cabo Espichel tenha sido instituída em 1432, um ano após a realização do círio organizado pela Paróquia de S. Vicente, de Alcabideche – Primeiro Círio dos Saloios, tal como consta em Memórias manuscritas depositadas na Biblioteca Nacional de Lisboa:

"E para que tudo assim concordado ficasse valioso, e firme, requereram ao Senhor Arcebispo de Lisboa, [que então era D. Pedro de Noronha] a aprovação de aquela forma de Círio, e Círculo de Freguesias, cada uma inteiramente representada pelo seu próprio Pároco, e pessoas dela mais distintas ficando isentas de pagarem quaisquer direitos paroquiais a nenhuma outra, durante o seu festejo”.

No ano de 1671 reúnem-se em Belas (Sintra) os procuradores das 30 freguesias que constituíam à época o “Giro” e aí estabeleceram, a partir dos antigos Estatutos de que tinham conhecimento, um Compromisso que ficou datado de 1672, comprovado por Bula Apostólica de Francisco Ravizza, Núncio do Reino, embora só em 1697 se tenha verificado a sua aprovação pelo Ordinário, por provisão de 19 de Setembro desse ano assinada pelo Cardeal-Arcebispo de Lisboa, D. Luís de Sousa, reinava D. Pedro II.

O compromisso (6, p. 32) estabelecia que:

"não entrará a servir nesta Confraria homem, que tenha rassa de judeo, nem de outra infesta nação, ou mulato", [o que na época acontecia com a generalidade das Confrarias} e "sendo caso que ellejão algum, e o queirão na sua Freguezia, os Louvados, ou Mordomos do Bodo, ou qualquer Confrade, serão obrigados a deitalo fora, e logo elegeram outro homem, que tenha as partes suficientes".

Dos seus corpos deveriam fazer parte

"homens beneméritos (…), não respeitando a afeição, mas ao merecimento de cada um", sendo eleitos "conforme o seu merecimento, não os antepondo a quem mais merecer"

E advertia-se que

"senão eleja Clerigo (…) salvo [se] em a Freguesia não houver Leigos, que possam servir", numa óbvia afirmação de autonomia face à instituição eclesiástica”.

A partir de 1893, devido à já citada pouca afluência de romeiros ao Cabo e ao desinteresse da família real pelo Círio, a Confraria cessou a sua actividade.

Na Actualidade – Ano de 2022

Irmandade Nossa Senhora do Cabo Espichel da Paróquia de Santa Maria de Loures (3)

Sede: Centro Paroquial de Santa Maria de Loures – Loures

No Giro dos Saloios, a 1 de Outubro de 2016, a Paróquia de Santa Maria de Loures recebe a imagem peregrina de Nossa Senhora dp Cabo Espichel em ambiente de Grande Festa e união Popular.

Entre essa data e até à partida da imagem para a Paróquia de S. Lourenço de Arranhó que retomou o seu lugar no Giro (onde não participava desde 1711), em Outubro de 2017 germinou a ideia de recuperar a tradição.

Nesse sentido a Paróquia de Santa Maria de Loures decidiu retomar o ritual da tradição e realizou uma peregrinação a pé desde Loures até ao Santuário de N. Senhora do Cabo Espichel, com pernoita em Charneca de Caparica, em 25 e 26 de Março de 2017.

Da necessidade então sentida de “criar algo mais” a 11 de Maio de 2018 é formalmente constituída a Irmandade de Nossa Senhora do Cabo Espichel da Paróquia de Santa Maria de Loures.

A 2 de Setembro de 2018 tomam posse os respectivos Órgãos Sociais.

Confraria do Círio dos Saloios de Nossa Senhora do Cabo Espichel (4)

Sede: Paróquia de Nossa Senhora da Misericórdia de Belas (conforme a tradição)

Depois de terem cessado a 1ª Confraria (1432-1672) e a 2ª Confraria (1672-1893) é criada a 3ª Confraria – Confraria do Círio dos Saloios se Nossa Senhora do Cabo Espichel com Estatutos aprovados em Janeiro de 2018 (alterados em AG de 7 de Março de 2020).

Os Órgãos Sociais são eleitos em 2 de Junho de 2018 e Tomam Posse em 28 de Setembro de 2018.

ÓRGÃOS SOCIAIS

Mesa da Assembleia Geral

Presidente – Luís Filipe Dinis

1º Secretário – António Cruz Lopes

2º Secretário – Nelson Batista

Conselho Fiscal

Presidente – José António Alves do Paço

1º Vogal – Ana Lúcia Alves Urmal

2º Vogal – Paulo Cardoso

Mesa Administrativa

Presidente – António Manuel do Vale Pinto

Secretário – Gonçalo F. Amado de Vasconcelos

Tesoureiro – José Miguel F. Oliveira

1º Vogal – José Jorge Gonçalves

2º Vogal – Helena Sofia Inglês da Silva Diniz

O início oficial da actividade é a 1 de Janeiro de 2019.


NOTAS

(1) São duas as berlindas processionais da Nossa Senhora do Cabo Espichel. A primeira (número de inventário 61 do Museu Nacional dos Coches) foi manada construir por D. João V em 1740 e era utilizada para o transporte da imagem entre a freguesia de Belém e a freguesia que nesse ano recolhia a imagem, percurso de regresso do Círio. A segunda tem o número de inventário 63 do MNC e terá sido construída entre 1788 e 1790 e era utilizada no percurso de ida entre Porto Brandão e o Cabo Espichel.

(2) São Luís de França era, igualmente, venerado na Capela da Quinta de Monserrate, em Charneca de Caparica, na linhagem dos reis sagrados cuja primazia coube ao rei D. Afonso Henriques (milagre cristológico de Ourique)

(3) Ver https://irmandadenossasracaboloures.wordpress.com [visitado em 4 de Abril de 2022]

(4) Ver https://confrariaciriosdoss.wixsite.com [visitado em 4 de Abril de 2022]


[CONTINUA]


quarta-feira, 13 de abril de 2022

OS CÍRIOS SÃO MANIFESTAÇÕES RELIGIOSAS DE FORTE CARIZ POPULAR, POIS TÊM A SUA GÉNESE NA NECESSIDADE SENTIDA PELAS POPULAÇÕES MAIS CARENCIADAS E MAIS SUJEITAS ÀS FORÇAS DA NATUREZA DE PEDIREM A AJUDA DIVINA PARA AS SUAS AFLIÇÕES E, POSTERIORMENTE, PAGAREM AS PROMESSAS QUE NESSE SENTIDO TENHAM FEITO - PRIMEIRA PARTE




OS CÍRIOS SÃO MANIFESTAÇÕES RELIGIOSAS DE FORTE CARIZ POPULAR, POIS TÊM A SUA GÉNESE NA NECESSIDADE SENTIDA PELAS POPULAÇÕES MAIS CARENCIADAS E MAIS SUJEITAS ÀS FORÇAS DA NATUREZA DE PEDIREM A AJUDA DIVINA PARA AS SUAS AFLIÇÕES E, POSTERIORMENTE, PAGAREM AS PROMESSAS QUE NESSE SENTIDO TENHAM FEITO - PRIMEIRA PARTE

Os Círios, as Romagens e os Giros

Os círios são manifestações religiosas de forte cariz popular, pois têm a sua génese na necessidade sentida pelas populações mais carenciadas e mais sujeitas às forças da Natureza de pedirem a ajuda divina para as suas aflições e, posteriormente, pagarem as promessas que nesse sentido tenham feito.

Trata-se de uma herança de antigos cultos agrários e piscatórios, muito anteriores ao calendário católico e que por este foram absorvidos aquando da proibição de todos os outros cultos por ordem de Constantino, no século IV.

Quando essas romagens têm origem em povoações diversas com destino a um determinado santuário, acordam entre si realizarem-nas em anos diferentes de forma cíclica assumindo a designação de giros.

Os santuários, construídos ou imaginários, grandes ou de dimensão reduzida, situam-se de um modo geral em locais de finisterra onde as pessoas se deslocam ciclicamente respondendo a um apelo ancestral sincronizado com o ritmo cósmico da Natureza.

A designação popular de círios resulta do facto dos romeiros transportarem enormes tochas ou velas (os círios) que, de um modo geral, acendem à chegada ao santuário, o que pela noite cria um ambiente especial, envolto em mistério e devoção. Contudo, a designação “círio” dada às romagens estremenhas com destino a cabos ocidentais, as “finisterra”, somente deve remontar à década 30 da era de mil e setecentos.

As deslocações em grupo, deslocações festivas mas igualmente de muita Fé e de grande convivialidade entre as gentes vão aumentando em número de pessoas consoante os quilómetros vão passando pois sempre se juntam novos elementos ao grupo em movimento.

Os círios são manifestações características da região da Estremadura portuguesa donde se destacam aqueles que se dirigem aos santuários de Nossa Senhora do Cabo Espichel, Nossa Senhora da Nazaré, Nossa Senhora da Atalaia (na região do Montijo), Nossa Senhora da Guia, Nossa Senhora da Peninha, Nossa Senhora da Praia (Azenhas do Mar) e Nossa Senhora da Penha de França (em Lisboa).

Na frente dos círios seguem dois anjos, outros autores e pessoas idosas ouvidas referem três anjinhos, vestidos de azul com asas e elmos estilo romano, que cantam loas a Nossa Senhora em diversos pontos do percurso e nas portas das Igrejas por onde passam os círios. Estas loas são muitas vezes escritas por reconhecidos poetas da região ou nascem espontaneamente da devoção popular, umas vezes manuscritas, outras impressos em enormes laudas, como utilizavam os andarilhos cantores de feira de outros tempos, e distribuídos aos participantes nos círios para acompanharem os cânticos dos anjinhos.

A Atlântida e o ancestral apelo da finisterra

Cito Bernardim Ribeiro:

“Dentro neste nosso mar Oceano, que aqui logo perto entra este rio, contam que havia naquele tempo uma ilha tão abundante e tamanha em terras, rica em cavalos, que dali todo o mundo quase senhoreava: Falavam dela maravilhas grandes.” (1)

Bernardim, embora com esta pequena referência, ter-se-á inspirado na imortalizada citação de Platão no Timeu e no Cristias relativa aos herdeiros da civilização semidivina de Um, a Atlântida.

As peregrinações respondendo a um chamamento ancestral das finisterra ocidentais, são por certo reminiscências desse continente que, embora, desaparecido manteve a toponímia, as lendas e os rituais perenes do subconsciente das gentes. As águas vivas terão feito recuar drasticamente a linha de costa, donde a memória do paraíso perdido terá sido a origem do “chamamento” das novas gerações para as terras que mais ficaram avançadas nos mares, as finisterras.

Os iniciados recebiam o segredo ancestral da magia e do mistério que apelavam à veneração.

Uma das finisterras que ainda hoje a quem a visita incute um sentir de mistério e de transcendental envolvimento é o Cabo Espichel, bem perto da não menos sublime serra da Arrábida e em cuja vizinhança Tubal, neto de Noé, fundou Setúbal, ponto de partida para o povoamento de toda a Hispânia, conforme defende Santo Isidro de Sevilha.

Como escreve Manuel de Faria y Sousa no seu livro “Europa Portuguesa”:

“… aportando en el Promontorio Barbarico [como lhe chamaram os romanos] que se chama agora [1678] Cabo Espichel apartado cinco leguas de la garganta del Tajo”. (2)

Quem observa o Mar Atlântico a partir dos miradouros da Reserva Botânica da Mata Nacional dos Medos no topo da Arriba Fóssil da Costa da Caparica, o “arco” natural de mar desde o Cabo Raso e o Monte da Lua até ao Promontório Barbárico, o Cabo Espichel, tem o sentimento nítido de que resulta de um movimento geológico que terá provocado a submersão que muitos autores atribuem à submersão da mítica Atlântida.

Submersão da Atlântida ter-se-á verificado em duas fases distintas, a primeira provavelmente entre 13.000 e 10.000 anos a.C. e a segunda entre 9.000 e 8.000 anos a.C. como defende o cientista russo Nicolas Giroff.

O Santuário de N. Senhora da Pedra Mu ou Mua [Cabo Espichel]

O Santuário de N. Senhora da Pedra Mu ou Mua também conhecido por Santuário de N. Senhora do Cabo situa-se no Cabo Espichel, a ocidente da vila de Sesimbra, é delimitado a sul e oeste pelo Oceano Atlântico e a norte pela estrada nacional 379 e Ribeira dos Caixeiros, Concelho de Sesimbra, Freguesia do Castelo de Sesimbra, Distrito de Setúbal.


Santuário de Nossa Senhora do Cabo Espichel

Algumas designações dadas a este Santuário:

Santuário de Nossa Senhora da Pedra Mu ou Mua

Santuário de Nossa Senhora do Cabo (Espichel)

Santuário do Círio do Termo dos Saloios

Santuário de Santa Maria dos Saloios

Santuário da Virgem Negra de Mu

Mosteiro de Nossa Senhora do Cabo (Espichel)

Santuário de Nossa Senhora do Cabo Espichel

É constituído, fundamentalmente, pela Igreja Seiscentista e pelas Casas dos Círios, pela Ermida da Memória, pela Casa da Água, pelo Aqueduto do Cabo Espichel e pelo Poço do Santuário, pela Casa da Ópera e pelos Cruzeiros de “Caminho”.

Igreja de Nossa Senhora do Cabo, Casas dos Círios e Cruzeiro

Construção original e de grande simbolismo pois encontra-se de costas para o Oceano Atlântico. A iniciativa da sua construção foi da Casa Real Portuguesa, nomeadamente do Rei Dom Pedro II, devoto de Nossa Senhora do Cabo, no início do século XVIII (1701 a 1707). O imóvel consiste num templo de "estilo chão" que apresenta planta longitudinal composta por retângulos justapostos, correspondentes à nave e à capela-mor, a que se adossam duas torres sineiras e duas sacristias.

O interior encontra-se bem decorado, incluindo paredes revestidas a mármore, bem como frescos e pinturas a óleo de autoria de Lourenço da Cunha. Esculturas de madeira estofada, assentes sobre altas peianhas, representando, do lado do Evangelho, São Pedro (dedicado ao Círio de Palmela), Santa Ana (ao Círio dos Saloios), Nossa Senhora da Conceição (ao Círio de Almada) e Senhor Jesus do Bonfim (ao Círio de Setúbal). No lado da Epístola, as imagens de São Lourenço (ao Círio de Azeitão), São Joaquim (ao Círio dos Saloios), São José (aos Círios de Arrentela e do Seixal) e São João (ao Círio da Caparica).

De cada lado da igreja há uma fila de alojamentos para peregrinos, chamada de Casa dos Círios ou simplesmente Hospedarias que formam o Terreiro no Cabo Espichel, também designado Arraial, ao fundo pode-se avistar um cruzeiro, local onde começa verdadeiramente o Santuário.

Ermida da Memória

A poente da Igreja de Nossa Senhora da Pedra Mu ou Mua e das Casas dos Círios/Hospedarias, (na parte de trás e para o lado direito), a cerca de 100 metros situa-se, sobranceira ao Oceano Atlântico, a Ermida da Memória, também conhecida por Capela da Memória com painéis de azulejos azuis e brancos no seu interior, representando a Lenda da Senhora do Cabo e imagens da construção da Capela.

No exterior encontram-se dois quadros de imagens em azulejo que estão muito degradados e que representam dois peregrinos. Templo quatrocentista construído precisamente no local onde reza a tradição ter-se-á dado a aparição da Virgem. De planta rectangular simples, harmoniosa e proporcional, este pequeno templo é encimado por cúpula boleada com coroa de ressaibos orientalizantes.

Ermida da Memória

Casa da Água

Foi construída em 1770 a mando do Rei Dom José I, tem forma hexagonal, coberta por cúpula em meia-laranja rematada por lanternim, cimalha envolvente, cunhais apilastrados marcando as seis faces. É antecedida por escadaria de vários lanços.

No interior, uma fonte "rocaille" em mármore, com motivos escultóricos ao gosto Berniniano, bancos de pedra ao longo das paredes, restos de um silhar (pedra lavrada e quadrangular, para revestimento de paredes) de azulejo (Fábrica de Belém) com cenas de caça e cenas alusivas aos círios. Tinha como objectivo abastecer de água o Santuário.


Casa da Água

A Casa da Água recebe a água trazida pelo Aqueduto desde a Azóia. Possuí um poço e dois tanques para dar de beber aos animais.

Aqueduto do Cabo Espichel

Aqueduto com uma extensão de cerca de 2,5 quilómetros destinado a trazer a água para a Casa da Água desde Azóia que é a localidade mais próxima.

Aqueduto

Poço do Santuário

Mandado construir por iniciativa régia e dentro do mesmo período cronológico da construção do Santuário (Séc. XVIII).

Poço do Santuário

Casa da Ópera

Mandada edificar em 1770 pelo Círio de Lisboa e iniciativa régia de D. José I, é um imóvel de planta retangular, setecentista, inclui cenários e acomodações para o público e artistas.

Casa da Ópera

Esta Casa tinha por objetivo promover animação cultural para os romeiros e festeiros. A própria família real, que visitava o Santuário durante o período de romaria, também promoveu aqui espetáculos. Aqui chegaram a actuar os maiores artistas e grupos teatrais da Europa, nomeadamente italianos.

Cruzeiros de “Caminho”

Além do cruzeiro principal à entrada do Arraial e que limita verdadeiramente a área do Santuário, existem três outros cruzeiros. O conjunto dos três Cruzeiros foi edificado durante a primeira metade do século XVIII, fazendo parte do circuito de romaria e de peregrinação ao Santuário, acompanhando a principal via de acesso, sendo, portanto, cruzeiros "de caminho".

Cruzeiros de “Caminho”

Devoção a N. Senhora da Pedra Mu ou Mua ou do Cabo Espichel

Há mais 600 anos, cerca de 1410, foi construída uma ermida pelos mareantes, (gentes do mar), para que guardassem uma imagem da Virgem, venerada há muito em cima do rochedo denominado Pedra de Mu ou Mua. À sua volta foram crescendo modestas casas para receber os peregrinos que aqui demandavam. Deu mais tarde (1715) lugar à construção das hospedarias com sobrados e lojas, também conhecidas por Casas dos Círios.

À Senhora do Cabo, designação dada a Santa Maria da Pedra de Mu ou Mua, afluem vários e numerosos grupos de círios (grandes grupos de peregrinos). Foi ao designado Círio dos Saloios (peregrinos das redondezas da capital) que coube o incentivo da construção das Casas dos Círios do Santuário, conforme se pode ler numa lápide junto à porta da igreja:

"Casas de N. Sra. de Cabo feitas por conta do Sírio dos Saloios no ano de 1757 p. acomodação dos mordomos que vierem dar bodo".

O culto a Nossa Senhora do Cabo terá começado no ano de 1212, quando ocorreu o naufrágio de um barco inglês ao largo do Cabo Espichel e a imagem mais antiga representava a “Virgem Negra”.

Sabe-se, contudo, que já na pré-história era este sítio local sagrado, de que se encontram vestígios na Lapa dos Lagosteiros.

As Lendas piedosas que apoiam o mito

Da análise dos relatos lendários - mas com possível base histórica - que nos narram os acontecimentos do Cabo Espichel, podemos distinguir nitidamente duas tradições diferentes: numa primeira lenda, a descoberta da imagem é atribuída exclusivamente a homens da Caparica, na margem sul do Tejo; numa segunda lenda, o achamento é atribuído a dois anciãos de Alcabideche e da Caparica, localidades que de algum modo representam as duas margens do Tejo em que o seu culto virá a adquirir forte expressão popular, também esta lenda com duas versões muito próximas. Uma outra lenda de origem diversa liga o culto de N. Senhora do Cabo ao naufrágio de uma embarcação inglesa.

Iconografia da Lenda

Lenda dos lenhadores da Caparica

Quanto à primeira tradição, Frei Agostinho de Santa Maria narra-a de forma bastante lacónica no seu "Santuário Mariano" (Vol 1, p 474):

“No mar Oceano, para a parte do meio dia a sul da Corte, e Cidade de Lisboa, mete a terra hua ponta, ou despenhada rocha, a que os navegantes chamam o "Cabo de Espichel", e os antigos chamaram Promontório Barbárico (…) Neste sítio sobre a rocha se vê ao presente uma Ermidinha, que se edificou para memória, a que chamam o Miradouro; é tradição constante, que aparecera a imagem de Nossa Senhora que por ser vista naquela rocha, a que chamão Cabo, a denominarão com este título."

E passa a identificar os autores da descoberta:

"Os venturosos", e os que primeiro descubriram este rico tesouro, foram alguns homens da Caparica, que iam aquela serra a cortar lenha; e daqui teve principio serem eles os primeiros também, que a festejassem. Por esta causa vão todos os anos com o seu sirio a solemnizar a sua festa em o primeiro Domingo de Junho (…).”

Lenda do saloio de Alcabideche

Consta que em 1410 um crente da região saloia de Alcabideche, tocado pelo Espírito Santo, lobrigou uma luz que brilhava para lá do mar que ele conhecia. Uma força sobre-humana ergueu-o e o pôs a caminho, levando-o no sentido para que era atraído.

Na sua caminhada, cansado com tamanha jornada, viu cair a noite quando chegava à população de Caparica, alojando-se numa casa que zelosa velha lhe franqueou. Nas conversas que naturalmente tiveram, o saloio revelou-lhe o seu segredo e na sua boa-fé, recolheram aos seus quartos.

Na manhã seguinte, grande foi o espanto do saloio ao constatar que a velha não se encontrava na casa. Não a localizando nas redondezas, pôs-se a caminho e passadas longas horas a caminhar, qual não foi a sua surpresa, chegado ao almejado lugar, deparou com a velha rezando junto da gruta onde se encontrava a pequenita imagem de Nossa Senhora. Logo ali o saloio prometeu construir uma pequena capela em honra de Nossa Senhora.

Lenda do homem de Alcabideche e da mulher da Caparica

Conta a lenda que um homem de Alcabideche e uma mulher da Caparica terão tido um sonho em simultâneo que os levou a caminhar para o “Promontório Barbárico” na procura de encontrarem a Virgem sonhada. Fizeram a caminhada sem saberem um do outro.

Encontraram-se então perante a Virgem que apareceu na praia montada numa mula que, ao trepar as rochas, deixou marcadas as suas patas [hoje sabe-se serem vestígios de pegadas de dinossáurios]. Em homenagem à Virgem, foi edificada, nesse mesmo local, uma ermida a que chamaram “da Pedra Mua”.

O velho de Alcabideche
E a velha da Caparica
Foram à Rocha do Cabo

Acharam prenda tão rica.

[quadra popular]

Lenda do naufrágio no barco inglês

No ano de 1215, reinava em Portugal D. Afonso II.

Um ou mais dos sobreviventes do naufrágio de um barco inglês ao largo do Cabo Espichel, após a grande tempestade que se abateu sobre a embarcação, vislumbraram uma luz que irradiava na encosta do Cabo, a qual irresistivelmente os atraiu para o local. Lá chegados depararam-se com a lindíssima imagem que havia antes estado entronizada no seu altar a bordo do barco naufragado.

Regressados à Inglaterra, um deles prometeu fazer erguer no local da aparição uma pequena ermida que guardasse tão abençoada imagem, a qual havia ficado naquele mesmo lugar numa gruta, protegida por arbustos e outras defesas naturais. Ou mesmo construíssem uma ermida e nela guardassem a abençoada imagem e nela passassem a viver.

Assim descreve Frei Agostinho de Santa Maria na sua obra “Santuário Mariano…”

“Cerca de 1215 pouco mais ou menos […] uma nau em direitura a Lisboa, no fim de alguns dias estando já na altura de Lisboa, não longe da costa lhe anoiteceu, e com uma cerração tão obscura que todos se davam como perdidos. A cada instante julgavam tocar em um baixo ou despedaçar-se a nau naquela brava costa; porque além de serem pouco versados nela com a grande obscuridade da noite não sabiam onde estavam, nem ainda que soubessem, lhes podia aproveitar pelo desmalado furor dos ventos, e braveza dos mares, que não deixavam que a nau obedecesse ao leme. Todos os que vinham nesta nau eram cristãos e católicos, como o eram então os Ingleses e entre eles vinha um Religioso Eremita de meu Patriarca São Agostinho chamado Haildebrant [Hildebrando], que devia ser Capelão da nau, ou de um fidalgo, que também ali vinha, chamado Dom Bartolomeu. Trazia este bom Religioso consigo uma Imagem de Nossa Senhora, com que tinha especial devoção […] a foi buscar ao seu camarote para se recomendar a ela, e pedir-lhe que lhe valesse, e a todos os mais que vinham na nau. Mas não a achou no lugar em que a trazia […]. Começou a dar vozes ao céu para que lhe valesse naquele grande aperto […]. Eis que de improviso viram em um alto uma grande luz, que no meio daquela escura noite lhe alumia a nau e viram como o podiam fazer com a luz do sol em um dia claro".

E conclui Frei Agostinho de Santa Maria mais adiante:

“[…] Consideraram que o achar-se a Santa Imagem em aquele lugar milagrosamente era mostrar-lhe que tinha feito eleição dele, e que ali queria ser venerada e assim se resolveram a não tirar daquele sítio sendo o principal voto desta deliberação o do nosso eremita Haildebrant [Hildebrando] (3), de quem era a Santa Imagem. E para que ficasse decentemente naquele lugar, com esmolas que juntou dos companheiros, e com licença do Bispo de Lisboa, lhe edificou boa Ermida em o mesmo lugar, e junto a ela uma cela, ou aposento para si, e para Dom Bartolomeu, que o quis acompanhar naquela solidão tão áspera […].”


NOTAS: (1)  In "Menina e Moça", Parte II, Capítulo I

             (2) SOUSA, Manuel Faria e - "Europa Portuguesa", Volume I, Parte I, Capítulo IX,                 p92, Segnda Edição, 1678

            (3) De salientar que o nome do eremita Haildebrant é uma derivação do de São                    Brandão, reputado monge, cujo nome está ligado intimamente ao Círio dos Saloios a             N. Senhora do Cabo na entrada do mesmo na margem Sul do Tejo [> Porto Brandão]


[CONTINUA]

            

quarta-feira, 29 de julho de 2020

NUMA TERRA ÁRIDA E SECA – TERRAS DE CHARNECA – UM OÁSIS DE ÁGUAS MEDICINAIS – III-Dos Poços das Quintas à Água Pública na Charneca de Caparica


Águas de características mineromedicinais comprovadas que foram sucesso como água engarrafada de qualidade superior e foram milagrosas na “cura da lepra e de doenças de pele” desde tempos remotos
Diferente disponibilidade de água entre o norte e o sul da Charneca de Caparica
A norte da povoação da Charneca de Caparica situa-se um importante lençol freático como descrições antigas permitem concluir, inclusive, com minas de água (ou fontes) de água mineromedicinal, analisadas por diversos especialista no decorrer dos tempos e sempre consideradas de elevada qualidade bacteriológica e de características medicinais – Barriga, Robalo, Casais da Charneca, Regateira e Botequim.
O mesmo não acontecia no desenvolvimento da Charneca de Caparica para sul em mais de meia légua ao correr da antiga Estrada Real, depois Estrada Distrital e posteriormente EN79 e mais tarde EN377, onde a penúria de água era grande recorrendo a população à boa vontade dos proprietário de poços, como descreve Duarte Joaquim Vieira Júnior:
Na Charneca era muito sensível a falta de água nos poços públicos, até finais da década de 1890, sendo os poços particulares, tais como os dos proprietários Jacome Vicente Gomes, António Francisco da Foz e Francisco Ferreira, e o de Vale de Rosal, que forneciam água na comunidade rural. O poço da quinta de Vale do Rosal fora aberto expressamente para serventia do público, graças à generosidade dos padres jesuítas, seus proprietários[1].
Poço quinhentista da Quinta de Vale de Rosal
Os proprietários de algumas quintas, como é o caso da Quinta da Regateira, construíam os poços divididos ao meio pelo miro da quinta. A parte interior era para serviço da quinta e a parte exterior ao muro para uso livre pela população.
A escassez de água era notória até para os simples actos de “lavar a roupa”, de cozinhar e para tomar banho.
Poço da Quinta da Regateira com a metade exterior para uso livre pela população
Na primeira metade do século XX ainda era assim como os mais antigos me descreveram:
Lavar a roupa na praia
Às segundas-feiras, em cima do burrito ou com a trouxa da roupa à cabeça as lavadeiras caminham pela Descida das Vacas, para lá da rocha, até à praia, Praia do Rei seria, onde vão lavar a roupa, que é previamente branqueada onde colocam sobre a mesma um pano grosso coberto de cinza que faz a função de branqueamento sem a sujar.
No longo areal que antecede a orla marítima escavam com uma enxada buracos até aparecer água, que é água doce. Utilizam três buracos com água doce, cada um com a sua finalidade. No primeiro para ensaboar colocam uma pedra plana onde esfregam a roupa, o segundo é para tirar o sabão e, finalmente, no terceiro para passar por água.
Depois estendem a roupa a corar e a secar no cimo de um medo coberto com uma “cama” de junco.
Pedra de lavar roupa na água doce da Praia do Rei
Água Pública – O “Chafariz do Botequim”
No início do ano de 1931, mais concretamente a 25 de Fevereiro, a Câmara de Almada toma conhecimento que estava autorizada pelo Ministério do Comércio e Comunicações a construir o chafariz da povoação da Charneca de Caparica. Na mesma sessão de Câmara foi deliberado mandar proceder à abertura de um poço de água potável no sítio da Rosa, para abastecimento à população da Charneca de Caparica, iniciando-se desde logo a obra por administração directa[2].
A 10 de Dezembro de 1931, Francisco Duarte Silva, proprietário de uma propriedade denominada “Vila Alice”, ao Botequim, na Charneca de Caparica, comunica à Câmara de Almada a sua intensão de ceder de boa vontade o moinho de vento situado dentro da mesma propriedade, para servir de depósito de água e, ainda, o terreno necessário para a instalação do respectivo chafariz. Apresentava como condições que aquela cedência era feita por prazo não determinado, reservando apenas o direito de reversão ao doador quando o moinho deixasse de ser aplicado para o fim a que era cedido salvaguardando assim um direito que reputava justo para evitar que de futuro fosse dado ao moinho e respectivo terreno outra aplicação. Manifestava também o desejo, a que chamava pedido, de que realizadas as instalações se canalizasse do referido depósito água para a sua habitação, garantindo-se-lhe o direito de aproveitar os desperdícios da mesma água do depósito para serem aplicados em benefício da sobredita propriedade onde o moinho existia[3].
Reunidas as condições, a Câmara mandou abrir concurso público para apresentação de propostas de orçamento para o fornecimento e montagem de um grupo motobomba e canalização para a estação elevatória da Charneca de Caparica, procedendo-se, em Março de 1932, à abertura das duas propostas concorrentes. Saiu vencedora a proposta apresentada por Francisco de Oliveira, estabelecido em Vila Nova de Caparica[4].
Chafariz do Botequim
O Chafariz do Botequim e o respectivo sistema de abastecimento de água foi inaugurado pela Câmara Municipal de Almada no ano de 1932. Trata-se do primeiro fontanário de água pública existente na Charneca de Caparica. Construído em alvenaria, em forma de ferradura, possuía na parte frontal tanque e bebedouro talhado numa pedra de calcário destinado ao uso humano e, na retaguarda, um bebedouro talhado na mesma pedra destinado aos animais que circulavam na estrada municipal, posteriormente EN79 e mais tarde EN377 e hoje desclassificada para rua (Rua do Botequim). Os mais antigos guardam nas suas memórias um chafariz em tons de branco e cinzento; o branco era o resultado de a população anualmente o caiar; o cinzento seria a tonalidade da pedra calcária envelhecida.
Chafariz do Botequim – Placa que data a inauguração
Recebia a água por gravidade de um depósito construído a partir de um antigo moinho de vento e que ainda hoje se encontra visível. A água era bombeada para o depósito com a utilização de uma motobomba a diesel a partir de um poço existente num rico aquífero, situado entre o local do chafariz e uma ribeira de enxurrada perto do sítio onde a partir de 1410 existiu o Convento da Cela Nova, dos eremitas religiosos de São Paulo, mais tarde designado Convento de Nossa Senhora da Rosa.
Testemunhos dos mais antigos referem mostrando a importância que o Chafariz do Botequim teve para a população local, desde as Casas Velhas até Palhais:
“Muitos baldinhos de água que eu fui aí buscar...antigamente não havia água canalizada e então as nossas mães iam buscar latas de 20 litros à cabeça pela estrada de terra batida. Só depois de a essa mesma estrada ser alcatroada [primeira metade do século XX] é que minha mãe fez um carrinho de madeira com rodinhas de esferas e então já levava 4 latas de cada vez.”
Decorria o ano de 1993, no mês de Março, encontrando-se o Chafariz do Botequim muito vandalizado, tendo mesmo sido roubados os tanques construídos em pedra que dele faziam parte, a Junta de Freguesia da Charneca de Caparica procedeu ao seu restauro com a utilização de cimento e pintados os realces em tinta castanho/ocre.
O historiador Alexandre Flores descreve assim o Chafariz do Botequim tal como se encontrava à data em que Carlos Canhou pintou uma magnífica aguarela tendo-o como tema:
O chafariz evidencia duas colunas rectangulares que suportam na sua parte superior uma estrutura em arco de volta perfeita. Tem uma torneira e uma pia rectangular, de pedra (já sem a grelha de ferro), e dois bancos laterais dispostos em “meia-lua”, Em frente, um pequeno frade de pedra resguarda todo o conjunto circular do chafariz.”[5]
Passados quase 20 anos, em finais de Agosto de 2012, de novo se verifica uma intervenção da Junta de Freguesia da Charneca de Caparica para proceder ao seu embelezamento, atendendo a que muitos charnequenses e outros interessados na história local o consideram um ícone da Freguesia. Procedeu-se então à reparação com cimento e a pintura dos realces em tinta azul (característica das fontes e chafarizes alentejanos), eventualmente, deste além-Tejo onde vivemos.
Actualmente [2011] o Chafariz do Botequim apresentava-se de novo muito vandalizado, especialmente, com a inscrição de “grafitti” e um aspecto de grande abandono, embora continue a ser útil para o abastecimento de água a famílias mais carenciadas que vivem na zona.
A Junta das Freguesias da Charneca de Caparica e Sobreda cuidou de um novo restauro, recuperando de novo a cor ocre na sua pintura (12 de Abril de 2019), e muito bem na nossa modesta opinião, apresentando-se de novo o Chafariz do Botequim como uma referência visual e de memória com a dignidade que merece.
A Água Pública na Actualidade
Com o aumento exponencial da população da Charneca de Caparica, especialmente após a construção da Ponte sobre o Tejo, o Município de Almada criou vários sistemas de armazenagem e distribuição de água – Quintinhas, Aroeira e outros – que rapidamente se mostravam insuficientes.
Em 1977 é inaugurado e colocado em funcionamento o Reservatório do Lazarim com o objectivo de servir cerca de 10.000 habitantes das localidades de Lazarim, Estrelinha, Capuchos e Charneca de Caparica. A partir dos finais dos anos 80 do século passado, atendendo ao aumento sazonal da população em época de Verão na Costa da Caparica também a sua resposta começou a ser insuficiente.
No ano de 1993 com a entrada em funcionamento do Reservatório Semienterrado do Cassapo e o respectivo sistema adutor o abastecimento de água à Charneca de Caparica estabilizou, pese embora o importante crescimento populacional verificado entre os Censos 2001 e Censos 2011. Com capacidade de servir cerca de 30.000 habitantes das localidades de Charneca de Caparica, Aroeira e Fonte da Telha.
Reservatório semienterrado do Cassapo
A história local constrói-se diariamente nas diversas componentes do “sítio”: as Gentes, o Território e o Património. O acto de “fazer” contribui determinantemente para a história.
Tem sido de todos os tempos a preocupação da Câmara Municipal de Almada não só com a qualidade de excelência da água da torneira como, igualmente, o tratamento eficaz das águas residuais.
Vem este pensamento a propósito de uma importante obra realizada pela Câmara Municipal de Almada e inaugurada a 4 de Abril de 2016 em Charneca de Caparica e que veio enriquecer o “ciclo da água” local: a Estação Elevatória Compacta de Águas Residuais da Foz do Rego.
Esta obra de grande impacto na defesa do ambiente vem ajudar a resolver uma grave situação estrutural relacionada com as águas residuais na zona da Ribeira da Foz do Rego.
Estação Elevatória Compacta de Águas Residuais da Foz do Rego
Mas as “coisas” não acontecem por acaso. A cerca de poucas dezenas do local onde foi construída a Estação Elevatória e tal como mostra a imagem situa-se uma fonte (ou mina de água) histórica (com cerca de 700 anos) designada Mina ou “Fonte” de Nossa Senhora da Rosa e a que o povo chamava Fonte de Santa Luzia, atendendo às qualidades medicinais das suas águas (para problemas de vista).
Uma área mais vasta onde esta também se inclui situam-se os “Casais da Charneca” com origem nas casas dos trabalhadores rurais que serviam o Convento de Nossa Senhora da Rosa de que restam parcos vestígios.
© Victor Reis, 20110301 [Oficina das Ideias] [Olho de Lince] [Histórias da História da Charneca de Caparica] [20200729]
© Protecção dos Direito de Autor ao abrigo do Decreto-Lei n.º 63/85, de 14 de Março, e alterado pelas Leis n.ºs 45/85, de 17 de Setembro, e 114/91, de 3 de Setembro, e Decretos-Leis n.ºs 332/97 e 334/97, ambos de 27 de Novembro, pela Lei n.º 50/2004, de 24 de Agosto, pela Lei n.º 24/2006 de 30 de Junho e pela Lei n.º 16/2008, de 1 de Abril [Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos]


[1] VIEIRA Júnior, Duarte Joaquim – VILA E TERMO DE ALMADA: APONTAMENTOS ANTIGOS E MODERNOS PARA A HISTÓRIA DO CONCELHO – Typ. Lucas, Lisboa, 1896, pp. 127-128
[2] Policarpo, António e FLORES, Alexandre – HISTÓRIA DA ÁGUA E SANEAMENTO EM ALMADA – Câmara Municipal de Almada / Serviços Municipalizados de Água e Saneamento, Almada, 2016, p.263
[3] Policarpo, António e FLORES, Alexandre – HISTÓRIA DA ÁGUA E SANEAMENTO EM ALMADA – Câmara Municipal de Almada / Serviços Municipalizados de Água e Saneamento, Almada, 2016, pp.270-271
[4] Ibid. pp.272-273
[5] FLORES, Alexandre M (texto) e CANHÃO Carlos (aguarelas), “Chafarizes de Almada”, Câmara Municipal de Almada, Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento, Almada, 1994, p104.