Águas de
características mineromedicinais comprovadas que foram sucesso como água
engarrafada de qualidade superior e foram milagrosas na “cura da lepra e de
doenças de pele” desde tempos remotos
Diferente
disponibilidade de água entre o norte e o sul da Charneca de Caparica
A norte da
povoação da Charneca de Caparica situa-se um importante lençol freático como
descrições antigas permitem concluir, inclusive, com minas de água (ou fontes)
de água mineromedicinal, analisadas por diversos especialista no decorrer dos
tempos e sempre consideradas de elevada qualidade bacteriológica e de
características medicinais – Barriga, Robalo, Casais da Charneca, Regateira e
Botequim.
O mesmo não
acontecia no desenvolvimento da Charneca de Caparica para sul em mais de meia
légua ao correr da antiga Estrada Real, depois Estrada Distrital e
posteriormente EN79 e mais tarde EN377, onde a penúria de água era grande
recorrendo a população à boa vontade dos proprietário de poços, como descreve
Duarte Joaquim Vieira Júnior:
“Na Charneca
era muito sensível a falta de água nos poços públicos, até finais da década de
1890, sendo os poços particulares, tais como os dos proprietários Jacome
Vicente Gomes, António Francisco da Foz e Francisco Ferreira, e o de Vale de
Rosal, que forneciam água na comunidade rural. O poço da quinta de Vale do
Rosal fora aberto expressamente para serventia do público, graças à
generosidade dos padres jesuítas, seus proprietários”[1].
Poço
quinhentista da Quinta de Vale de Rosal
Os proprietários
de algumas quintas, como é o caso da Quinta da Regateira, construíam os poços
divididos ao meio pelo miro da quinta. A parte interior era para serviço da
quinta e a parte exterior ao muro para uso livre pela população.
A escassez de
água era notória até para os simples actos de “lavar a roupa”, de cozinhar e
para tomar banho.
Poço
da Quinta da Regateira com a metade exterior para uso livre pela população
Na primeira
metade do século XX ainda era assim como os mais antigos me descreveram:
Lavar a roupa na
praia
Às
segundas-feiras, em cima do burrito ou com a trouxa da roupa à cabeça as
lavadeiras caminham pela Descida das Vacas, para lá da rocha, até à praia,
Praia do Rei seria, onde vão lavar a roupa, que é previamente branqueada onde
colocam sobre a mesma um pano grosso coberto de cinza que faz a função de
branqueamento sem a sujar.
No longo areal
que antecede a orla marítima escavam com uma enxada buracos até aparecer água,
que é água doce. Utilizam três buracos com água doce, cada um com a sua
finalidade. No primeiro para ensaboar colocam uma pedra plana onde esfregam a
roupa, o segundo é para tirar o sabão e, finalmente, no terceiro para passar
por água.
Depois estendem
a roupa a corar e a secar no cimo de um medo coberto com uma “cama” de junco.
Pedra
de lavar roupa na água doce da Praia do Rei
Água Pública – O
“Chafariz do Botequim”
No início do ano
de 1931, mais concretamente a 25 de Fevereiro, a Câmara de Almada toma
conhecimento que estava autorizada pelo Ministério do Comércio e Comunicações a
construir o chafariz da povoação da Charneca de Caparica. Na mesma sessão de
Câmara foi deliberado mandar proceder à abertura de um poço de água potável no
sítio da Rosa, para abastecimento à população da Charneca de Caparica,
iniciando-se desde logo a obra por administração directa[2].
A 10 de Dezembro
de 1931, Francisco Duarte Silva, proprietário de uma propriedade denominada
“Vila Alice”, ao Botequim, na Charneca de Caparica, comunica à Câmara de Almada
a sua intensão de ceder de boa vontade o moinho de vento situado dentro da
mesma propriedade, para servir de depósito de água e, ainda, o terreno
necessário para a instalação do respectivo chafariz. Apresentava como condições
que aquela cedência era feita por prazo não determinado, reservando apenas o
direito de reversão ao doador quando o moinho deixasse de ser aplicado para o
fim a que era cedido salvaguardando assim um direito que reputava justo para
evitar que de futuro fosse dado ao moinho e respectivo terreno outra aplicação.
Manifestava também o desejo, a que chamava pedido, de que realizadas as
instalações se canalizasse do referido depósito água para a sua habitação,
garantindo-se-lhe o direito de aproveitar os desperdícios da mesma água do
depósito para serem aplicados em benefício da sobredita propriedade onde o
moinho existia[3].
Reunidas as
condições, a Câmara mandou abrir concurso público para apresentação de
propostas de orçamento para o fornecimento e montagem de um grupo motobomba e
canalização para a estação elevatória da Charneca de Caparica, procedendo-se,
em Março de 1932, à abertura das duas propostas concorrentes. Saiu vencedora a
proposta apresentada por Francisco de Oliveira, estabelecido em Vila Nova de
Caparica[4].
Chafariz
do Botequim
O Chafariz do
Botequim e o respectivo sistema de abastecimento de água foi inaugurado pela
Câmara Municipal de Almada no ano de 1932. Trata-se do primeiro fontanário de
água pública existente na Charneca de Caparica. Construído em alvenaria, em
forma de ferradura, possuía na parte frontal tanque e bebedouro talhado numa
pedra de calcário destinado ao uso humano e, na retaguarda, um bebedouro
talhado na mesma pedra destinado aos animais que circulavam na estrada
municipal, posteriormente EN79 e mais tarde EN377 e hoje desclassificada para
rua (Rua do Botequim). Os mais antigos guardam nas suas memórias um chafariz em
tons de branco e cinzento; o branco era o resultado de a população anualmente o
caiar; o cinzento seria a tonalidade da pedra calcária envelhecida.
Chafariz
do Botequim – Placa que data a inauguração
Recebia a água
por gravidade de um depósito construído a partir de um antigo moinho de vento e
que ainda hoje se encontra visível. A água era bombeada para o depósito com a
utilização de uma motobomba a diesel
a partir de um poço existente num rico aquífero, situado entre o local do
chafariz e uma ribeira de enxurrada perto do sítio onde a partir de 1410
existiu o Convento da Cela Nova, dos eremitas religiosos de São Paulo, mais
tarde designado Convento de Nossa Senhora da Rosa.
Testemunhos dos
mais antigos referem mostrando a importância que o Chafariz do Botequim teve
para a população local, desde as Casas Velhas até Palhais:
“Muitos
baldinhos de água que eu fui aí buscar...antigamente não havia água canalizada
e então as nossas mães iam buscar latas de 20 litros à cabeça pela estrada de
terra batida. Só depois de a essa mesma estrada ser alcatroada [primeira metade
do século XX] é que minha mãe fez um
carrinho de madeira com rodinhas de esferas e então já levava 4 latas de cada
vez.”
Decorria o ano
de 1993, no mês de Março, encontrando-se o Chafariz do Botequim muito
vandalizado, tendo mesmo sido roubados os tanques construídos em pedra que dele
faziam parte, a Junta de Freguesia da Charneca de Caparica procedeu ao seu
restauro com a utilização de cimento e pintados os realces em tinta
castanho/ocre.
O historiador
Alexandre Flores descreve assim o Chafariz do Botequim tal como se encontrava à
data em que Carlos Canhou pintou uma magnífica aguarela tendo-o como tema:
“O chafariz
evidencia duas colunas rectangulares que suportam na sua parte superior uma
estrutura em arco de volta perfeita. Tem uma torneira e uma pia rectangular, de
pedra (já sem a grelha de ferro), e dois bancos laterais dispostos em
“meia-lua”, Em frente, um pequeno frade de pedra resguarda todo o conjunto
circular do chafariz.”[5]
Passados quase
20 anos, em finais de Agosto de 2012, de novo se verifica uma intervenção da
Junta de Freguesia da Charneca de Caparica para proceder ao seu embelezamento,
atendendo a que muitos charnequenses e outros interessados na história local o
consideram um ícone da Freguesia. Procedeu-se então à reparação com cimento e a
pintura dos realces em tinta azul (característica das fontes e chafarizes
alentejanos), eventualmente, deste além-Tejo onde vivemos.
Actualmente [2011]
o Chafariz do Botequim apresentava-se de novo muito vandalizado, especialmente,
com a inscrição de “grafitti” e um aspecto de grande abandono, embora continue
a ser útil para o abastecimento de água a famílias mais carenciadas que vivem
na zona.
A Junta das
Freguesias da Charneca de Caparica e Sobreda cuidou de um novo restauro,
recuperando de novo a cor ocre na sua pintura (12 de Abril de 2019), e muito
bem na nossa modesta opinião, apresentando-se de novo o Chafariz do Botequim
como uma referência visual e de memória com a dignidade que merece.
A Água Pública na
Actualidade
Com o aumento
exponencial da população da Charneca de Caparica, especialmente após a
construção da Ponte sobre o Tejo, o Município de Almada criou vários sistemas
de armazenagem e distribuição de água – Quintinhas, Aroeira e outros – que
rapidamente se mostravam insuficientes.
Em 1977 é
inaugurado e colocado em funcionamento o Reservatório do Lazarim com o
objectivo de servir cerca de 10.000 habitantes das localidades de Lazarim,
Estrelinha, Capuchos e Charneca de Caparica. A partir dos finais dos anos 80 do
século passado, atendendo ao aumento sazonal da população em época de Verão na
Costa da Caparica também a sua resposta começou a ser insuficiente.
No ano de 1993
com a entrada em funcionamento do Reservatório Semienterrado do Cassapo e o
respectivo sistema adutor o abastecimento de água à Charneca de Caparica
estabilizou, pese embora o importante crescimento populacional verificado entre
os Censos 2001 e Censos 2011. Com capacidade de servir cerca de 30.000
habitantes das localidades de Charneca de Caparica, Aroeira e Fonte da Telha.
Reservatório
semienterrado do Cassapo
A história local
constrói-se diariamente nas diversas componentes do “sítio”: as Gentes, o
Território e o Património. O acto de “fazer” contribui determinantemente para a
história.
Tem sido de
todos os tempos a preocupação da Câmara Municipal de Almada não só com a
qualidade de excelência da água da torneira como, igualmente, o tratamento
eficaz das águas residuais.
Vem este
pensamento a propósito de uma importante obra realizada pela Câmara Municipal
de Almada e inaugurada a 4 de Abril de 2016 em Charneca de Caparica e que veio
enriquecer o “ciclo da água” local: a Estação Elevatória Compacta de Águas
Residuais da Foz do Rego.
Esta obra de
grande impacto na defesa do ambiente vem ajudar a resolver uma grave situação
estrutural relacionada com as águas residuais na zona da Ribeira da Foz do
Rego.
Estação
Elevatória Compacta de Águas Residuais da Foz do Rego
Mas as “coisas”
não acontecem por acaso. A cerca de poucas dezenas do local onde foi construída
a Estação Elevatória e tal como mostra a imagem situa-se uma fonte (ou mina de
água) histórica (com cerca de 700 anos) designada Mina ou “Fonte” de Nossa
Senhora da Rosa e a que o povo chamava Fonte de Santa Luzia, atendendo às
qualidades medicinais das suas águas (para problemas de vista).
Uma área mais
vasta onde esta também se inclui situam-se os “Casais da Charneca” com origem
nas casas dos trabalhadores rurais que serviam o Convento de Nossa Senhora da
Rosa de que restam parcos vestígios.
© Victor Reis, 20110301 [Oficina
das Ideias] [Olho de Lince] [Histórias da História da Charneca de Caparica]
[20200729]
© Protecção dos
Direito de Autor ao abrigo do Decreto-Lei n.º 63/85, de 14 de Março, e alterado
pelas Leis n.ºs 45/85, de 17 de Setembro, e 114/91, de 3 de Setembro, e
Decretos-Leis n.ºs 332/97 e 334/97, ambos de 27 de Novembro, pela Lei n.º
50/2004, de 24 de Agosto, pela Lei n.º 24/2006 de 30 de Junho e pela Lei n.º
16/2008, de 1 de Abril [Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos]
[1] VIEIRA
Júnior, Duarte Joaquim – VILA E TERMO DE ALMADA: APONTAMENTOS ANTIGOS E
MODERNOS PARA A HISTÓRIA DO CONCELHO – Typ. Lucas, Lisboa, 1896, pp. 127-128
[2]
Policarpo, António e FLORES, Alexandre – HISTÓRIA DA ÁGUA E SANEAMENTO EM
ALMADA – Câmara Municipal de Almada / Serviços Municipalizados de Água e
Saneamento, Almada, 2016, p.263
[3]
Policarpo, António e FLORES, Alexandre – HISTÓRIA DA ÁGUA E SANEAMENTO EM
ALMADA – Câmara Municipal de Almada / Serviços Municipalizados de Água e
Saneamento, Almada, 2016, pp.270-271
[4] Ibid.
pp.272-273
[5] FLORES,
Alexandre M (texto) e CANHÃO Carlos (aguarelas), “Chafarizes de Almada”, Câmara
Municipal de Almada, Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento, Almada,
1994, p104.