Todas
as aldeias (hoje em dia, vilas ou lugares) da zona rural do Concelho de Almada
desenvolveram-se linearmente de ambos os lados de uma via estruturante que liga
Porto Brandão à Charneca de Caparica e que havia sido idealizada para prolongar
o seu desenvolvimento até Sesimbra, ou até mesmo ao Cabo Espichel, local a que
uma "memória antiga” apelava à deslocação dos povos, lugar da finisterra e
sagrado assim era considerado.
Esta
via, conhecida por “Via do Monte”, tem início em Porto Brandão, um pequeno
porto à beira-rio ligado a Lisboa por transporte fluvial frequente, e
caminhando para Sul situam-se Fonte Santa, Torre, Casas Velhas, Arieiro,
Monserrate [note-se que em documentação mais antiga não é referido Botequim], Palhais,
Marco Cabaço, Vale de Cavalos [mais significativo que o actual topónimo de Vale
Cavala] [*] e Charneca. Depois, somente mato e pinhal até à Lagoa de Albufeira.
Caminhos entre matos e pinheiros
Na
época romana um troço desta via, mais concretamente entre Casas Velhas e
Arieiro, corresponderia à passagem da Via Romana nº 1 que liga Lisboa a Mérida.
Via
estruturante já foi no tempo da monarquia Estrada Real que atravessa
longitudinalmente a então aldeia de Charneca de Caparica, cujo desenvolvimento
urbanístico inicial usou a referida estrada como espinha dorsal vinda desde o
Areeiro (Areeiro da Caparica) e mais para norte de Porto Brandão até ao Castelo
de Sesimbra, numa distância de cerca de cinco léguas.
Ligar Almada a Sesimbra pela EN377 era o objectivo nunca realizado
Estrada
de macadame, a partir do Marco Cabaço para sul transforma-se numa autêntica
azinhaga onde até os carros puxados a animais teriam dificuldade de circular. O
transporte privilegiado é, então, o burro pelas suas características de
movimentação. Apesar de tais condições muito degradadas do piso, era por ela
que seguiam num passado remoto os Círios dos Saloios quando desembarcavam em
Porto Brandão e se dirigiam ao Santuário de Nossa Senhora do Cabo Espichel.
O transporte privilegiado é o burro
O
Povo guarda no seu imaginário e registou na toponímia local sítios como sejam a
Rua e a Azinhaga do Círio e a Rua de Nossa Senhora do Cabo, aproximadamente
situadas nos caminhos por onde os Círios dos Saloios historicamente passavam
seguindo pelos pinhais do Rei, do Arneiro e da Apostiça, por Alfarim, rumo ao
Barbárico Promontório, o Cabo Espichel.
Esta
Estrada Real, que posteriormente foi Estrada Distrital, nos finais do século
XIX considerada a melhor de todo o Concelho de Almada e mais tarde Estrada
Nacional, sofreu beneficiações, mormente quando foi pela primeira vez
alcatroada, na primeira metade do século XX, numa primeira fase até Palhais,
sendo à época Presidente da Câmara de Almada, o Comandante Sá Linhares.
Ainda
macadamizada, por esta importante via começa a chegar à Charneca a primeira
camioneta que foi a 15 das “Camionetas Piedense” propriedade de João Baptista
Zagalo e António “de Évora”, este último o dono da Quinta de Cima, e que
terminava o seu percurso em Palhais. No que se pensa ter sido o seu primeiro
horário, datado de Setembro de 1938, tem duas carreiras:
Partidas
de Cacilhas para Monte – Lazarim – Charneca, às 8h50m e 18 horas
Partidas
para Cacilhas de Charneca, por Lazarim - Monte, às 9h30m e 16h40m
Não
é um horário muito adequado ao povo da Charneca nem tão pouco ajuda a quebrar o
isolamento relativamente a Almada e menos ainda no que diz respeito a Lisboa.
Um ou outro jovem que pretendesse ir estudar no liceu teria que se deslocar a
Lisboa. Os horários não são compatíveis com a entrada na escola às 8 horas
todas as manhãs. Perante as circunstâncias este horário veio a ser alterado
posteriormente.
No
início do século XX o Automóvel Club de Portugal – ACP assinalou as principais
localidades e vias de comunicação com placas toponímicas feitas em série e
pintadas à mão em azulejos quadrados cada um com uma letra para formar a
palavra pretendida. Na zona superior da placa foi colocada a sigla ACP em
letras entrelaçadas.
De
um modo geral estas placas eram colocadas na fachada de edifícios situados no
que o ACP considerava à época o “centro da localidade”.
Placa toponímica ACP
Na
Charneca de Caparica o ACP colocou a placa toponímica “CHARNECA” no edifício da
estância de madeiras da família Costa, situada em Palhais, junto à EN-377, do lado esquerdo como era habitual à época, onde
actualmente é um armazém de pneus e com a desclassificação da EN-337, passou a
chamar-se Rua de Elias Garcia.
Anos
mais tarde, após o alcatroamento da via ter chegado até Marco Cabaço, é
ampliado o percurso até este local, garantido pelo carro 29 da “Piedense” que
já ostenta o celebrizado “zeppelin” de prata na ilharga e é uma Berliet que
havia sido carroçada em França e que em Maio de 1953 inaugurou a carreira do
Porto Brandão ao Monte de Caparica, pois tinha grande capacidade nas subidas.
Camionetas Piedense
É
uma “nova Piedense” desde que em 1944 foi adquirida por José de Sousa e Silva,
o “Algarvio”, oriundo das terras do sul e proprietário da Empresa de Viação do
Algarve, e por Agostinho Ramos Munhá. José de Sousa e Silva tem uma quinta na
Charneca, perto da Quinta Nova, paredes meias com a Quinta do Jorge Alvarez, e
com este último são os grandes impulsionadores à época do desenvolvimento da
Charneca de Caparica.
Num
inquérito realizado pela Junta Autónoma das Estradas [J.A.E.] em 1937/1938, “Circulação
Geral Automóvel” a via estruturante da Charneca de Caparica era designada como
Estrada Nacional 79 [EN-79] + Ramal da Charneca (Cacilhas/Charneca) e foram
contabilizados em média/dia a passagem de 110 veículos para um máximo de 171.
O
número de passageiros transportados em 1944 pela carreira Cacilhas-Lazarim e
Charneca foram 13.498.
Nos
finais dos anos 40 do século XX a Junta Autónoma das Estradas ainda preconizava
ligar o troço da EN-377 que atravessa a Charneca ao troço existente após a
Quinta da Apostiça (em Marco do Grilo) e que faria a ligação ao Cabo Espichel,
o que nunca veio a acontecer.
O
crescimento exponencial da Charneca após a construção da Ponte sobre o Tejo,
inaugurada em 1966, levou a que em finais do século XX a via estruturante da
Charneca de Caparica fosse desclassificada como Estrada Nacional e transformada
em via urbana ficando assim referenciada: Rua do Botequim (entre a entrada na
Vila e Botequim); Rua de Elias Garcia (entre o Botequim e Palhais); Rua de
Oliveira Feijão (entre Palhais e Marco Cabaço); Rua de António Andrade (entre o
Marco Cabaço e Quintinhas); Rua de Pedro Costa (entre Quintinhas e Tremoceira);
Rua de D. João V (entre a Tremoceira e o final poente da Avenida do Mar) embora
a partir do restaurante Stop para sul seja Estrada Florestal.
Fontes: a) GROER, Étienne de, “Urbanização
do Concelho de Almada (Setembro de 1946): análise e programa – relatório”,
in “Anais de Almada”, Edição da Divisão de História Local e Arquivo Histórico
da CMA, nºs. 7-8, pp 221 a 223, 1946; b) REIS,
Victor, “Histórias da História de
Charneca de Caparica”, 247 pp, Janeiro de 2011; c) SILVA, Francisco, GONÇALVES,
Elisabete e outros, “Sobreda – História e
Património”, Centro de Arqueologia de Almada, Junta de Freguesia da
Sobreda, 2013.
[*]
Contribuição do historiador Rui Manuel Mesquita Mendes:"Vale de Cavalos (?) será
uma corruptela recente. De facto o topónimo Cavala é bem mais antigo,
provavelmente relacionado com a abundância desta na costa... como nota José
Augusto Amaral, a João Vasques de Almada, conselheiro do rei e aos seus «pinhais
de Cavala e de Vai lhe Bem foi atribuída carta de coutada, por D. João I, em
1413, a qual proibia o corte de madeira e lenha, a caça e o pasto». A coutada
do «Pinhal de A-de-Cavala» foi confirmada depois ao seu filho, Álvaro Vasques
de Almada (futuro Conde de Abranches) (1434), e a Álvaro Pires de Távora, que
ficou com parte dos bens daquele, depois da Batalha da Alfarrobeira (1449).
Igualmente, no século XVIII, há a referência a um Casal de Vale de Cavala, de
que era senhorio Francisco de Mendonça Arrais (1795), descendente do mercador
italiano Bartolomeu Marchioni, que foi grande proprietário na Caparica e Almada
no século XVI"
© Victor Reis,
20180905 [Oficina das Ideias] [Histórias da História da Charneca de Caparica] [Mítica
EN-377] [20200703]
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