quarta-feira, 29 de julho de 2020

NUMA TERRA ÁRIDA E SECA – TERRAS DE CHARNECA – UM OÁSIS DE ÁGUAS MEDICINAIS – III-Dos Poços das Quintas à Água Pública na Charneca de Caparica


Águas de características mineromedicinais comprovadas que foram sucesso como água engarrafada de qualidade superior e foram milagrosas na “cura da lepra e de doenças de pele” desde tempos remotos
Diferente disponibilidade de água entre o norte e o sul da Charneca de Caparica
A norte da povoação da Charneca de Caparica situa-se um importante lençol freático como descrições antigas permitem concluir, inclusive, com minas de água (ou fontes) de água mineromedicinal, analisadas por diversos especialista no decorrer dos tempos e sempre consideradas de elevada qualidade bacteriológica e de características medicinais – Barriga, Robalo, Casais da Charneca, Regateira e Botequim.
O mesmo não acontecia no desenvolvimento da Charneca de Caparica para sul em mais de meia légua ao correr da antiga Estrada Real, depois Estrada Distrital e posteriormente EN79 e mais tarde EN377, onde a penúria de água era grande recorrendo a população à boa vontade dos proprietário de poços, como descreve Duarte Joaquim Vieira Júnior:
Na Charneca era muito sensível a falta de água nos poços públicos, até finais da década de 1890, sendo os poços particulares, tais como os dos proprietários Jacome Vicente Gomes, António Francisco da Foz e Francisco Ferreira, e o de Vale de Rosal, que forneciam água na comunidade rural. O poço da quinta de Vale do Rosal fora aberto expressamente para serventia do público, graças à generosidade dos padres jesuítas, seus proprietários[1].
Poço quinhentista da Quinta de Vale de Rosal
Os proprietários de algumas quintas, como é o caso da Quinta da Regateira, construíam os poços divididos ao meio pelo miro da quinta. A parte interior era para serviço da quinta e a parte exterior ao muro para uso livre pela população.
A escassez de água era notória até para os simples actos de “lavar a roupa”, de cozinhar e para tomar banho.
Poço da Quinta da Regateira com a metade exterior para uso livre pela população
Na primeira metade do século XX ainda era assim como os mais antigos me descreveram:
Lavar a roupa na praia
Às segundas-feiras, em cima do burrito ou com a trouxa da roupa à cabeça as lavadeiras caminham pela Descida das Vacas, para lá da rocha, até à praia, Praia do Rei seria, onde vão lavar a roupa, que é previamente branqueada onde colocam sobre a mesma um pano grosso coberto de cinza que faz a função de branqueamento sem a sujar.
No longo areal que antecede a orla marítima escavam com uma enxada buracos até aparecer água, que é água doce. Utilizam três buracos com água doce, cada um com a sua finalidade. No primeiro para ensaboar colocam uma pedra plana onde esfregam a roupa, o segundo é para tirar o sabão e, finalmente, no terceiro para passar por água.
Depois estendem a roupa a corar e a secar no cimo de um medo coberto com uma “cama” de junco.
Pedra de lavar roupa na água doce da Praia do Rei
Água Pública – O “Chafariz do Botequim”
No início do ano de 1931, mais concretamente a 25 de Fevereiro, a Câmara de Almada toma conhecimento que estava autorizada pelo Ministério do Comércio e Comunicações a construir o chafariz da povoação da Charneca de Caparica. Na mesma sessão de Câmara foi deliberado mandar proceder à abertura de um poço de água potável no sítio da Rosa, para abastecimento à população da Charneca de Caparica, iniciando-se desde logo a obra por administração directa[2].
A 10 de Dezembro de 1931, Francisco Duarte Silva, proprietário de uma propriedade denominada “Vila Alice”, ao Botequim, na Charneca de Caparica, comunica à Câmara de Almada a sua intensão de ceder de boa vontade o moinho de vento situado dentro da mesma propriedade, para servir de depósito de água e, ainda, o terreno necessário para a instalação do respectivo chafariz. Apresentava como condições que aquela cedência era feita por prazo não determinado, reservando apenas o direito de reversão ao doador quando o moinho deixasse de ser aplicado para o fim a que era cedido salvaguardando assim um direito que reputava justo para evitar que de futuro fosse dado ao moinho e respectivo terreno outra aplicação. Manifestava também o desejo, a que chamava pedido, de que realizadas as instalações se canalizasse do referido depósito água para a sua habitação, garantindo-se-lhe o direito de aproveitar os desperdícios da mesma água do depósito para serem aplicados em benefício da sobredita propriedade onde o moinho existia[3].
Reunidas as condições, a Câmara mandou abrir concurso público para apresentação de propostas de orçamento para o fornecimento e montagem de um grupo motobomba e canalização para a estação elevatória da Charneca de Caparica, procedendo-se, em Março de 1932, à abertura das duas propostas concorrentes. Saiu vencedora a proposta apresentada por Francisco de Oliveira, estabelecido em Vila Nova de Caparica[4].
Chafariz do Botequim
O Chafariz do Botequim e o respectivo sistema de abastecimento de água foi inaugurado pela Câmara Municipal de Almada no ano de 1932. Trata-se do primeiro fontanário de água pública existente na Charneca de Caparica. Construído em alvenaria, em forma de ferradura, possuía na parte frontal tanque e bebedouro talhado numa pedra de calcário destinado ao uso humano e, na retaguarda, um bebedouro talhado na mesma pedra destinado aos animais que circulavam na estrada municipal, posteriormente EN79 e mais tarde EN377 e hoje desclassificada para rua (Rua do Botequim). Os mais antigos guardam nas suas memórias um chafariz em tons de branco e cinzento; o branco era o resultado de a população anualmente o caiar; o cinzento seria a tonalidade da pedra calcária envelhecida.
Chafariz do Botequim – Placa que data a inauguração
Recebia a água por gravidade de um depósito construído a partir de um antigo moinho de vento e que ainda hoje se encontra visível. A água era bombeada para o depósito com a utilização de uma motobomba a diesel a partir de um poço existente num rico aquífero, situado entre o local do chafariz e uma ribeira de enxurrada perto do sítio onde a partir de 1410 existiu o Convento da Cela Nova, dos eremitas religiosos de São Paulo, mais tarde designado Convento de Nossa Senhora da Rosa.
Testemunhos dos mais antigos referem mostrando a importância que o Chafariz do Botequim teve para a população local, desde as Casas Velhas até Palhais:
“Muitos baldinhos de água que eu fui aí buscar...antigamente não havia água canalizada e então as nossas mães iam buscar latas de 20 litros à cabeça pela estrada de terra batida. Só depois de a essa mesma estrada ser alcatroada [primeira metade do século XX] é que minha mãe fez um carrinho de madeira com rodinhas de esferas e então já levava 4 latas de cada vez.”
Decorria o ano de 1993, no mês de Março, encontrando-se o Chafariz do Botequim muito vandalizado, tendo mesmo sido roubados os tanques construídos em pedra que dele faziam parte, a Junta de Freguesia da Charneca de Caparica procedeu ao seu restauro com a utilização de cimento e pintados os realces em tinta castanho/ocre.
O historiador Alexandre Flores descreve assim o Chafariz do Botequim tal como se encontrava à data em que Carlos Canhou pintou uma magnífica aguarela tendo-o como tema:
O chafariz evidencia duas colunas rectangulares que suportam na sua parte superior uma estrutura em arco de volta perfeita. Tem uma torneira e uma pia rectangular, de pedra (já sem a grelha de ferro), e dois bancos laterais dispostos em “meia-lua”, Em frente, um pequeno frade de pedra resguarda todo o conjunto circular do chafariz.”[5]
Passados quase 20 anos, em finais de Agosto de 2012, de novo se verifica uma intervenção da Junta de Freguesia da Charneca de Caparica para proceder ao seu embelezamento, atendendo a que muitos charnequenses e outros interessados na história local o consideram um ícone da Freguesia. Procedeu-se então à reparação com cimento e a pintura dos realces em tinta azul (característica das fontes e chafarizes alentejanos), eventualmente, deste além-Tejo onde vivemos.
Actualmente [2011] o Chafariz do Botequim apresentava-se de novo muito vandalizado, especialmente, com a inscrição de “grafitti” e um aspecto de grande abandono, embora continue a ser útil para o abastecimento de água a famílias mais carenciadas que vivem na zona.
A Junta das Freguesias da Charneca de Caparica e Sobreda cuidou de um novo restauro, recuperando de novo a cor ocre na sua pintura (12 de Abril de 2019), e muito bem na nossa modesta opinião, apresentando-se de novo o Chafariz do Botequim como uma referência visual e de memória com a dignidade que merece.
A Água Pública na Actualidade
Com o aumento exponencial da população da Charneca de Caparica, especialmente após a construção da Ponte sobre o Tejo, o Município de Almada criou vários sistemas de armazenagem e distribuição de água – Quintinhas, Aroeira e outros – que rapidamente se mostravam insuficientes.
Em 1977 é inaugurado e colocado em funcionamento o Reservatório do Lazarim com o objectivo de servir cerca de 10.000 habitantes das localidades de Lazarim, Estrelinha, Capuchos e Charneca de Caparica. A partir dos finais dos anos 80 do século passado, atendendo ao aumento sazonal da população em época de Verão na Costa da Caparica também a sua resposta começou a ser insuficiente.
No ano de 1993 com a entrada em funcionamento do Reservatório Semienterrado do Cassapo e o respectivo sistema adutor o abastecimento de água à Charneca de Caparica estabilizou, pese embora o importante crescimento populacional verificado entre os Censos 2001 e Censos 2011. Com capacidade de servir cerca de 30.000 habitantes das localidades de Charneca de Caparica, Aroeira e Fonte da Telha.
Reservatório semienterrado do Cassapo
A história local constrói-se diariamente nas diversas componentes do “sítio”: as Gentes, o Território e o Património. O acto de “fazer” contribui determinantemente para a história.
Tem sido de todos os tempos a preocupação da Câmara Municipal de Almada não só com a qualidade de excelência da água da torneira como, igualmente, o tratamento eficaz das águas residuais.
Vem este pensamento a propósito de uma importante obra realizada pela Câmara Municipal de Almada e inaugurada a 4 de Abril de 2016 em Charneca de Caparica e que veio enriquecer o “ciclo da água” local: a Estação Elevatória Compacta de Águas Residuais da Foz do Rego.
Esta obra de grande impacto na defesa do ambiente vem ajudar a resolver uma grave situação estrutural relacionada com as águas residuais na zona da Ribeira da Foz do Rego.
Estação Elevatória Compacta de Águas Residuais da Foz do Rego
Mas as “coisas” não acontecem por acaso. A cerca de poucas dezenas do local onde foi construída a Estação Elevatória e tal como mostra a imagem situa-se uma fonte (ou mina de água) histórica (com cerca de 700 anos) designada Mina ou “Fonte” de Nossa Senhora da Rosa e a que o povo chamava Fonte de Santa Luzia, atendendo às qualidades medicinais das suas águas (para problemas de vista).
Uma área mais vasta onde esta também se inclui situam-se os “Casais da Charneca” com origem nas casas dos trabalhadores rurais que serviam o Convento de Nossa Senhora da Rosa de que restam parcos vestígios.
© Victor Reis, 20110301 [Oficina das Ideias] [Olho de Lince] [Histórias da História da Charneca de Caparica] [20200729]
© Protecção dos Direito de Autor ao abrigo do Decreto-Lei n.º 63/85, de 14 de Março, e alterado pelas Leis n.ºs 45/85, de 17 de Setembro, e 114/91, de 3 de Setembro, e Decretos-Leis n.ºs 332/97 e 334/97, ambos de 27 de Novembro, pela Lei n.º 50/2004, de 24 de Agosto, pela Lei n.º 24/2006 de 30 de Junho e pela Lei n.º 16/2008, de 1 de Abril [Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos]


[1] VIEIRA Júnior, Duarte Joaquim – VILA E TERMO DE ALMADA: APONTAMENTOS ANTIGOS E MODERNOS PARA A HISTÓRIA DO CONCELHO – Typ. Lucas, Lisboa, 1896, pp. 127-128
[2] Policarpo, António e FLORES, Alexandre – HISTÓRIA DA ÁGUA E SANEAMENTO EM ALMADA – Câmara Municipal de Almada / Serviços Municipalizados de Água e Saneamento, Almada, 2016, p.263
[3] Policarpo, António e FLORES, Alexandre – HISTÓRIA DA ÁGUA E SANEAMENTO EM ALMADA – Câmara Municipal de Almada / Serviços Municipalizados de Água e Saneamento, Almada, 2016, pp.270-271
[4] Ibid. pp.272-273
[5] FLORES, Alexandre M (texto) e CANHÃO Carlos (aguarelas), “Chafarizes de Almada”, Câmara Municipal de Almada, Serviços Municipalizados de Águas e Saneamento, Almada, 1994, p104.

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