segunda-feira, 6 de julho de 2020

RESERVA BOTÂNICA DA MATA NACIONAL DOS MEDOS


Corre-me nas veias o aroma dos pinheiros mansos; Corre-me nas veias o silêncio da Mata tranquila; Corre-me nas veias a brisa e o marulhar do Mar; Corre-me nas veias o caleidoscópio das cores das flores consoante a estação do ano; Corre-me nas veias as pegadas dos animais e das aves que habitam a Mata; Corre-me nas veias os voos e a "voz" dos corvídeos. A MATA DOS MEDOS É O MEU VÍCIO!
Situa-se na área geográfica da Vila de Charneca de Caparica uma importante mancha florestal hoje designada, desde 1971 [pelo Decreto-lei nº 444/71, de 23 de Outubro], por Reserva Botânica da Mata Nacional dos Medos (R.B.M.N.M.). Anteriormente, encontramos referência a esta mata como Pinhal do Rei ou Mata dos Medos.
Reserva Botânica da Mata Nacional dos Medos
A partir de 1984 com a criação da Paisagem Protegida da Arriba Fóssil da Costa da Caparica (P.P.A.F.C.C.) [pelo Decreto-lei nº 168/84, de 22 de Maio] a Reserva Botânica da Mata Nacional do Medos passou nela a ser integrada.
Arriba Fóssil da Costa da Caparica
O símbolo (logotipo) da P.P.A.F.C.C. é uma vieira, “Pecten maximus”, lamelibrânquio nas jazidas fósseis da arriba e que vive nos fundos arenosos da costa portuguesa.
Símbolo (logotipo) da P.P.A.F.C.C. - Vieira, “Pecten maximus”
Na documentação oficial do Instituto da Conservação da Natureza e florestas atribui-se a plantação na Mata dos Medos ao rei D. João V (Lisboa, 22 de Outubro de 1689 – Lisboa, 31 de Julho de 1750) com o objectivo de fixar as areias da dunas que por efeito dos ventos predominantes de Oeste progrediam para os terrenos agrícolas.
D. João V – Escultura em esferovite existente no C. de I. da Mata dos Medos
Contudo, em documentação gentilmente cedida pelo historiador Rui Manuel Mesquita Mendes, podemos encontrar referências que nos indicam a existência da Mata dos Medos ser anterior a D. João V.
Assim, nos capítulos 9 e 10 das Cortes de Lisboa de 1645-1646, no reinado de D. João IV, consta: “9 - No termo da ditta villa [Almada] há huns pinhais, a que chamam os medos, que foi couza grandiosa, estes com as Cortes que lhe dão, e muitas vezes, não sendo pera o serviso de Vossa Magestade estam destruídos.
Pedem a Vossa Magestade mande que os dittos pinhais senão tire couza alguma sen ordem da Camera, e as que Vossa Magestade mandar pera se tirarem ou cortarem paos, va a ditta Camera. /Fl. 20v/ e que outro sim per ordem della, por conta da tersa que os conselhos dão a Vossa Magestade, se fasa cada anno sementeira de pinhõnis; per que asim se tornara a restaurar o ditto pinhal e tera Vossa Magestade madeiras pera as embarcasones; perque o ditto pinhal povoado he couza grandiosa; e outro sim que se obrigue aos moradores da ditta villa mandem cada anno fazer sementeira em seus pinhais, pondo lhe as penas que pareser, e de tudo se mande pasar a provisão per ser cauza tão emportante.”
(…)
No décimo capítulo: “Parece que, sendo este pinhal de Vossa Magestade como he, que deve Vossa Magestade mandar devassar cada anno pelo corregedor de Almada, das pessoas que nelle cortarem madeira, sem ordem e licença do Conselho de Fazenda, que a dara somente para as madeiras necessarias ao serviso de Vossa Magestade e que o mesmo corregedor vá fazer vesturia com pessoas que o entendam, e que nas partes, onde se poder semear pinhões, se fasa sementeira delles por conta da tença”.
Este documento apoia a tese que defendemos de que a Mata dos Medos (ou Pinhal do Rei) não terá sido mandada plantar, mas sim replantar, pelo rei D. João V e mesmo assim com algumas reservas baseadas em estudos efectuados e já publicados.
Nuno Leitão, no texto "A Floresta e os Florestais na História de Portugal (parte I)” diz o seguinte: «Quando se chega ao reinado de D. João V a desarborização do país é a mais acentuada de sempre, com a expansão das culturas de cereal e das vinhas, quando as necessidades em madeira não são sentidas devido à importação de material lenhoso do Brasil, quando os fogos se acentuam para a promoção de pastagens ou para obtenção de carvão para a indústria. A situação da floresta portuguesa vive o seu pior período com este monarca e, apesar de lhe ser atribuída a criação do pinhal dos Medos (a Mata dos Medos), só no reinado seguinte foram tomadas medidas concretas para se inverter esta situação”.
Por seu lado Álvaro Duarte de Almeida, na obra "Portugal Património", afirma que a Mata dos Medos ou Pinhal do Rei «plantou-se, possivelmente no reinado de D. João V».
De facto, em 13 de Dezembro de 1723, uma Ordem do Conselho da Fazenda determina que o Guarda-Mor do Pinhal dos Medos use do Regimento dos Pinhais da Azambuja e Virtudes, mandando-se para esse efeito registar o dito Regimento na Câmara de Almada (Ribeiro, Tom. 5.°, pag. 106), o que não significa que esse ofício fosse então criado, este já existia antes, pois uma Carta de D. João V, datada de 15 de Março de 1721, nomeia Luís Tavares Toscano para Guarda Mor do Pinhal dos Medos em Almada (TT-RGM,D. João V, liv. 12, f. 374), certamente em substituição do Capitão (depois Sargento-Mor) e Escrivão da Câmara – Luís Martins, da Quinta de São Miguel, no Pragal, que já em 1710 tinha o mesmo ofício de "Guarda Mór dos Medos de sua Magestade".
Na realidade o ofício de Guarda-Mor dos Pinhais dos Medos, foi criado por D. Pedro II, pai de D. João V, por Alvará de 11 de Outubro de 1695 (TT-RGM, D. Pedro II, liv. 10, f. 25), atendendo ao que lhe representara o Conselho da Fazenda dos "danos que se experimentavão nos Pinhaes dos Medos, sendo muito necessário a sua conservação e que seria preciso nomear-se um Guarda Mor que tratasse dela". Foi então nomeado para o dito ofício o Licenciado Luís de Lemos da Costa, Juiz de Fora da vila de Almada, praticando nele o Regimento dos Pinhais das Virtudes (Azambuja), com o ordenado de 20$000 réis anuais pelo tempo que exercesse o dito cargo de Juiz de Fora (que o foi até ser transferido para Corregedor da comarca da cidade de Tavira em 1707).
O Pinhal dos Medos foi quase totalmente desbaratada no século XVIII, o que foi evitado por intervenção estatal.
Desde tempos imemoriais até meados da década de 40 do século XX a Mata dos Medos foi sempre uma fonte de trabalho e de rendimento para a população da, então, aldeia de Charneca de Caparica onde a generalidade das pessoas viviam em condições sociais e económicas paupérrimas.
Reserva Botânica da Mata Nacional dos Medos - Caminho dos Rouxinóis
Quando em 1608 Luiz Mendes de Vasconcellos escreve a sua obra, que muitos designam por panfleto, “do Sítio de Lisboa – sua grandeza, povoação e comércio” – diálogos entre um “político”, um “filósofo” e um “soldado”, com a qual pretende convencer o rei Filipe II a transferir a capital do reino (Portugal e Castela) para Lisboa, fez uma análise correcta ao que era à época a margem sul do rio Tejo e “lavrou a sentença” do que seria esta região nos séculos seguintes.
Escreveu assim: “não me deixa sem grande maravilha considerar a grande divisão que faz o Tejo da terra em que Lisboa fértil e aptíssima a produzir tudo o que nela semearem, e de boníssimos ares (…) – e a Charneca da outra parte, incapaz de muitas nem grandes povoações, por ser a maior parte dela estéril para as sementeiras, mas de lenha fecundíssima para o provimento da cidade, obra (como disse) só da particular Providência Divina: porque se a Charneca fora como a terra desta parte, ou como a do Alentejo, que atrás dela se segue, era impossível este povo de Lisboa sustentar-se na grandeza que tem.”
Acrescentou, ainda, e transcrevemos para que mais clareza desça sobre o assunto: “Convém, em todo o caso, atenuar um pouco o esquematismo dessa visão simplista. Nem todas as terras da margem norte são férteis, nem todas as do outro foram sempre pobres e despovoadas. As colinas de Almada e da Caparica têm a mesma natureza geológica, os mesmos solos e o mesmo relevo que as que lhes correspondem a norte do rio. […]”
Se é verdade que Luiz Vasconcellos chamava charneca a toda a zona do “além tejo” “árida e pouco habitada” que decorria deste Almada e Caparica até ao Alentejo, não foi menos verdade que cuidou escrever com letra maiúscula “Charneca”, repetidas vezes o fez, quando se queria referir à fartura de lenha aí existente e de que Lisboa e o seu Termo tanto careciam.
E na realidade desde o século XVII ou mesmo antes e até à primeira metade do século XX o desígnio da grande maioria dos homens da Charneca foi trabalharem nos pinhais existentes para sul da povoação que muito marcou a vivência de um povo, quer nos aspectos económicos, quer nos sociais.
Tal não obstou a que, como acrescenta Luiz Vasconcellos: “A proximidade do mercado lisboeta levou a cultivar, mesmo em algumas terras inférteis da Charneca, sobretudo nas regiões ribeirinhas, produtos destinados à cidade.”
Vendedores de frutas e de legumes da Charneca embarcam nos “catraios” do Porto Brandão e atravessam o rio Tejo para irem fazer negócio no Mercado Agrícola de Belém.
Os homens da Charneca desde muito jovens se encaminham para os pinhais circundantes – o Pinhal do Baralho, o Pinhal do Arneiro dos Duques de Palmela, o Pinhal do Rei, o Pinhal de Val de Vem, o Pinhal da Verdizela, o Pinhal da Apostiça – para aí trabalharem nas muitas e duras tarefas que os tempos e a argúcia mostraram ser rentáveis para o seu sustento e o das suas famílias.
Durante o Verão ausentam-se das suas casas semanas inteiras, vivem nos pinhais nos “bardos”, palhoças precárias construídas com troncos de pinheiro e tendo como telhado ramadas mais finas ou molhos de junco colhidas nas zonas pantanosas dos pinhais. Dormem em camas improvisadas feitas de caruma, envolvidos em grossas mantas. Defronte dos “bardos” mantêm durante toda a época de trabalho uma fogueira permanentemente acesa que serve para cozinhar os parcos alimentos que levam consigo, um pedaço de manta de toucinho, batatas e algum feijão, e para afastar os animais selvagens que por ali deambulam. Trabalham de sol-a-sol, são acordados pelo “cantar do cartaxinho”.
Há aqueles que trabalham para um patrão com alguma organização. Cortam pinheiros cuja madeira é vendida, através de intermediários, para as minas de carvão de Inglaterra onde é utilizada em estacaria para escorar as galerias. Os cepos dos pinheiros são utilizados nas fornalhas das fábricas e dos comboios a vapor, de grande importância no tempo da II Grande Guerra.
Carregam as madeiras nos pinhais em “carretas”, carros de bois que as transportam até ao porto da Raposa, perto do Fogueteiro, e daí seguem em fragatas do rio Tejo até Lisboa.
Reserva Botânica da Mata Nacional dos Medos - Abate controlado de pinheiros
Das inúmeras saibreiras existentes no interior do pinhal há homens que se dedicam a retirar o burgau que depois de lavado é vendido aos pedreiros para com ele darem mais resistência ao adobe utilizado na construção de casas.
Reserva Botânica da Mata Nacional dos Medos - Saibreira com "burgau"
Tudo é aproveitado no pinhal. As ramadas dos pinheiros são vendidas para as padarias. O junco serve para fazerem os baraços para atarem as ramadas. A lenha é transportada em burros para alimentar as fornalhas da Fábrica da Pólvora de Vale de Milhaços, depois que esta começou a laborar. Aproveitam ainda a “caroca”, aparas resultantes do corte dos pinheiros, que é vendida na povoação para fazer o “fogo de chão” devido ao seu grande poder calorífico, da mesma forma que os tralhões e as pinhas.
Reserva Botânica da Mata Nacional dos Medos - Pinha de Pinheiro Manso
Os pinhais são fartos em coelhos bravos e em lebres e é frequente verem-se grandes rebanhos de cabras a pastorearem no restolho da mata.
Pelo pinhal andam os aguadeiros por conta dos patrões ou a venderem água aos trabalhadores individuais. Vão buscar a água aos poços e transportam-na em barris de 50 litros em cima das cangalhas dos burros e quantas vezes às costas.
No final da semana os homens regressados dos pinhais, cansados e sujos, e antes mesmo de irem para suas casas, juntam-se nas tabernas, todos armados de varapau onde, muitos deles, bebem vinho até caírem de bêbados. Outros envolvem-se em valentes rixas que nem sempre acabavam da melhor forma. É ver o molho de varapaus que são arrumados encostados a um canto das tabernas. Os “Margaridos” são conhecidos pela sua conflitualidade e agressividade.

Saber mais: "Paisagem Protegida da Arriba Fóssil da Costa da Caparica", INN/PPAFCC, 2002; MENDES, Rui  Manuel Mesquita, cita Actas, capítulos 9 e 10 das Cortes de Lisboa de 1645-1646, no reinado de D. João IV; LEITÃO,Nuno texto "A Floresta e os Florestais na História de Portugal (parte I)”; VASCONCELLOS, Luiz Mendes, panfleto, “do Sítio de Lisboa, 1608.
© Victor Reis, 20110311 / 20180824, [Oficina das Ideias] [Histórias da História da Charneca de Caparica] [RB Mata Nacional dos Medos] [20200706]

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