Corre-me
nas veias o aroma dos pinheiros mansos; Corre-me nas veias o silêncio da Mata
tranquila; Corre-me nas veias a brisa e o marulhar do Mar; Corre-me nas veias o
caleidoscópio das cores das flores consoante a estação do ano; Corre-me nas
veias as pegadas dos animais e das aves que habitam a Mata; Corre-me nas veias
os voos e a "voz" dos corvídeos. A MATA DOS MEDOS É O MEU VÍCIO!
Situa-se
na área geográfica da Vila de Charneca de Caparica uma importante mancha
florestal hoje designada, desde 1971 [pelo Decreto-lei nº 444/71, de 23 de
Outubro], por Reserva Botânica da Mata Nacional dos Medos (R.B.M.N.M.).
Anteriormente, encontramos referência a esta mata como Pinhal do Rei ou Mata
dos Medos.
Reserva Botânica da Mata Nacional dos Medos
A
partir de 1984 com a criação da Paisagem Protegida da Arriba Fóssil da Costa da
Caparica (P.P.A.F.C.C.) [pelo Decreto-lei nº 168/84, de 22 de Maio] a Reserva
Botânica da Mata Nacional do Medos passou nela a ser integrada.
Arriba Fóssil da Costa da Caparica
O
símbolo (logotipo) da P.P.A.F.C.C. é uma vieira, “Pecten maximus”,
lamelibrânquio nas jazidas fósseis da arriba e que vive nos fundos arenosos da
costa portuguesa.
Símbolo (logotipo) da P.P.A.F.C.C. - Vieira, “Pecten maximus”
Na
documentação oficial do Instituto da Conservação da Natureza e florestas
atribui-se a plantação na Mata dos Medos ao rei D. João V (Lisboa, 22 de
Outubro de 1689 – Lisboa, 31 de Julho de 1750) com o objectivo de fixar as
areias da dunas que por efeito dos ventos predominantes de Oeste progrediam
para os terrenos agrícolas.
D. João V – Escultura em esferovite existente no C. de I. da
Mata dos Medos
Contudo,
em documentação gentilmente cedida pelo historiador Rui Manuel Mesquita Mendes,
podemos encontrar referências que nos indicam a existência da Mata dos Medos
ser anterior a D. João V.
Assim,
nos capítulos 9 e 10 das Cortes de Lisboa de 1645-1646, no reinado de D. João
IV, consta: “9 - No termo da ditta villa [Almada] há huns pinhais, a que chamam os medos, que
foi couza grandiosa, estes com as Cortes que lhe dão, e muitas vezes, não sendo
pera o serviso de Vossa Magestade estam destruídos.
Pedem a Vossa Magestade mande que os
dittos pinhais senão tire couza alguma sen ordem da Camera, e as que Vossa Magestade
mandar pera se tirarem ou cortarem paos, va a ditta Camera. /Fl. 20v/ e que
outro sim per ordem della, por conta da tersa que os conselhos dão a Vossa
Magestade, se fasa cada anno sementeira de pinhõnis; per que asim se tornara a
restaurar o ditto pinhal e tera Vossa Magestade madeiras pera as embarcasones;
perque o ditto pinhal povoado he couza grandiosa; e outro sim que se obrigue
aos moradores da ditta villa mandem cada anno fazer sementeira em seus pinhais,
pondo lhe as penas que pareser, e de tudo se mande pasar a provisão per ser
cauza tão emportante.”
(…)
No
décimo capítulo: “Parece que, sendo este
pinhal de Vossa Magestade como he, que deve Vossa Magestade mandar devassar
cada anno pelo corregedor de Almada,
das pessoas que nelle cortarem madeira, sem ordem e licença do Conselho de
Fazenda, que a dara somente para as madeiras necessarias ao serviso de Vossa
Magestade e que o mesmo corregedor vá fazer vesturia com pessoas que o
entendam, e que nas partes, onde se poder semear pinhões, se fasa sementeira
delles por conta da tença”.
Este
documento apoia a tese que defendemos de que a Mata dos Medos (ou Pinhal do
Rei) não terá sido mandada plantar, mas sim replantar, pelo rei D. João V e
mesmo assim com algumas reservas baseadas em estudos efectuados e já
publicados.
Nuno
Leitão, no texto "A Floresta e os Florestais na História de Portugal
(parte I)” diz o seguinte: «Quando se
chega ao reinado de D. João V a desarborização do país é a mais acentuada de
sempre, com a expansão das culturas de cereal e das vinhas, quando as
necessidades em madeira não são sentidas devido à importação de material
lenhoso do Brasil, quando os fogos se acentuam para a promoção de pastagens ou
para obtenção de carvão para a indústria. A situação da floresta portuguesa
vive o seu pior período com este monarca e, apesar de lhe ser atribuída a
criação do pinhal dos Medos (a Mata dos Medos), só no reinado seguinte foram
tomadas medidas concretas para se inverter esta situação”.
Por
seu lado Álvaro Duarte de Almeida, na obra "Portugal Património",
afirma que a Mata dos Medos ou Pinhal do Rei «plantou-se, possivelmente no reinado de D. João V».
De
facto, em 13 de Dezembro de 1723, uma Ordem do Conselho da Fazenda determina
que o Guarda-Mor do Pinhal dos Medos use do Regimento dos Pinhais da Azambuja e
Virtudes, mandando-se para esse efeito registar o dito Regimento na Câmara de
Almada (Ribeiro, Tom. 5.°, pag. 106), o que não significa que esse ofício fosse
então criado, este já existia antes, pois uma Carta de D. João V, datada de 15 de
Março de 1721, nomeia Luís Tavares Toscano para Guarda Mor do Pinhal dos Medos
em Almada (TT-RGM,D. João V, liv. 12, f. 374), certamente em substituição do
Capitão (depois Sargento-Mor) e Escrivão da Câmara – Luís Martins, da Quinta de
São Miguel, no Pragal, que já em 1710 tinha o mesmo ofício de "Guarda Mór dos Medos de sua Magestade".
Na
realidade o ofício de Guarda-Mor dos Pinhais dos Medos, foi criado por D. Pedro
II, pai de D. João V, por Alvará de 11 de Outubro de 1695 (TT-RGM, D. Pedro II,
liv. 10, f. 25), atendendo ao que lhe representara o Conselho da Fazenda dos
"danos que se experimentavão nos
Pinhaes dos Medos, sendo muito necessário a sua conservação e que seria preciso
nomear-se um Guarda Mor que tratasse dela". Foi então nomeado para o
dito ofício o Licenciado Luís de Lemos da Costa, Juiz de Fora da vila de
Almada, praticando nele o Regimento dos Pinhais das Virtudes (Azambuja), com o
ordenado de 20$000 réis anuais pelo tempo que exercesse o dito cargo de Juiz de
Fora (que o foi até ser transferido para Corregedor da comarca da cidade de
Tavira em 1707).
O
Pinhal dos Medos foi quase totalmente desbaratada no século XVIII, o que foi
evitado por intervenção estatal.
Desde
tempos imemoriais até meados da década de 40 do século XX a Mata dos Medos foi
sempre uma fonte de trabalho e de rendimento para a população da, então, aldeia
de Charneca de Caparica onde a generalidade das pessoas viviam em condições
sociais e económicas paupérrimas.
Reserva Botânica da Mata Nacional dos Medos - Caminho dos Rouxinóis
Quando
em 1608 Luiz Mendes de Vasconcellos escreve a sua obra, que muitos designam por
panfleto, “do Sítio de Lisboa – sua grandeza, povoação e comércio” – diálogos
entre um “político”, um “filósofo” e um “soldado”, com a qual pretende
convencer o rei Filipe II a transferir a capital do reino (Portugal e Castela)
para Lisboa, fez uma análise correcta ao que era à época a margem sul do rio
Tejo e “lavrou a sentença” do que seria esta região nos séculos seguintes.
Escreveu
assim: “não me deixa sem grande maravilha
considerar a grande divisão que faz o Tejo da terra em que Lisboa fértil e
aptíssima a produzir tudo o que nela semearem, e de boníssimos ares (…) – e a
Charneca da outra parte, incapaz de muitas nem grandes povoações, por ser a
maior parte dela estéril para as sementeiras, mas de lenha fecundíssima para o
provimento da cidade, obra (como disse) só da particular Providência Divina:
porque se a Charneca fora como a terra desta parte, ou como a do Alentejo, que
atrás dela se segue, era impossível este povo de Lisboa sustentar-se na
grandeza que tem.”
Acrescentou,
ainda, e transcrevemos para que mais clareza desça sobre o assunto: “Convém, em todo o caso, atenuar um pouco o
esquematismo dessa visão simplista. Nem todas as terras da margem norte são
férteis, nem todas as do outro foram sempre pobres e despovoadas. As colinas de
Almada e da Caparica têm a mesma natureza geológica, os mesmos solos e o mesmo
relevo que as que lhes correspondem a norte do rio. […]”
Se
é verdade que Luiz Vasconcellos chamava charneca a toda a zona do “além tejo”
“árida e pouco habitada” que decorria deste Almada e Caparica até ao Alentejo,
não foi menos verdade que cuidou escrever com letra maiúscula “Charneca”,
repetidas vezes o fez, quando se queria referir à fartura de lenha aí existente
e de que Lisboa e o seu Termo tanto careciam.
E
na realidade desde o século XVII ou mesmo antes e até à primeira metade do
século XX o desígnio da grande maioria dos homens da Charneca foi trabalharem
nos pinhais existentes para sul da povoação que muito marcou a vivência de um
povo, quer nos aspectos económicos, quer nos sociais.
Tal
não obstou a que, como acrescenta Luiz Vasconcellos: “A proximidade do mercado lisboeta levou a cultivar, mesmo em algumas
terras inférteis da Charneca, sobretudo nas regiões ribeirinhas, produtos
destinados à cidade.”
Vendedores
de frutas e de legumes da Charneca embarcam nos “catraios” do Porto Brandão e
atravessam o rio Tejo para irem fazer negócio no Mercado Agrícola de Belém.
Os
homens da Charneca desde muito jovens se encaminham para os pinhais
circundantes – o Pinhal do Baralho, o Pinhal do Arneiro dos Duques de Palmela,
o Pinhal do Rei, o Pinhal de Val de Vem, o Pinhal da Verdizela, o Pinhal da
Apostiça – para aí trabalharem nas muitas e duras tarefas que os tempos e a
argúcia mostraram ser rentáveis para o seu sustento e o das suas famílias.
Durante
o Verão ausentam-se das suas casas semanas inteiras, vivem nos pinhais nos
“bardos”, palhoças precárias construídas com troncos de pinheiro e tendo como
telhado ramadas mais finas ou molhos de junco colhidas nas zonas pantanosas dos
pinhais. Dormem em camas improvisadas feitas de caruma, envolvidos em grossas
mantas. Defronte dos “bardos” mantêm durante toda a época de trabalho uma fogueira
permanentemente acesa que serve para cozinhar os parcos alimentos que levam
consigo, um pedaço de manta de toucinho, batatas e algum feijão, e para afastar
os animais selvagens que por ali deambulam. Trabalham de sol-a-sol, são
acordados pelo “cantar do cartaxinho”.
Há
aqueles que trabalham para um patrão com alguma organização. Cortam pinheiros
cuja madeira é vendida, através de intermediários, para as minas de carvão de
Inglaterra onde é utilizada em estacaria para escorar as galerias. Os cepos dos
pinheiros são utilizados nas fornalhas das fábricas e dos comboios a vapor, de
grande importância no tempo da II Grande Guerra.
Carregam
as madeiras nos pinhais em “carretas”, carros de bois que as transportam até ao
porto da Raposa, perto do Fogueteiro, e daí seguem em fragatas do rio Tejo até
Lisboa.
Reserva Botânica da Mata Nacional dos Medos - Abate
controlado de pinheiros
Das
inúmeras saibreiras existentes no interior do pinhal há homens que se dedicam a
retirar o burgau que depois de lavado é vendido aos pedreiros para com ele
darem mais resistência ao adobe utilizado na construção de casas.
Tudo
é aproveitado no pinhal. As ramadas dos pinheiros são vendidas para as
padarias. O junco serve para fazerem os baraços para atarem as ramadas. A lenha
é transportada em burros para alimentar as fornalhas da Fábrica da Pólvora de
Vale de Milhaços, depois que esta começou a laborar. Aproveitam ainda a
“caroca”, aparas resultantes do corte dos pinheiros, que é vendida na povoação
para fazer o “fogo de chão” devido ao seu grande poder calorífico, da mesma
forma que os tralhões e as pinhas.
Reserva Botânica da Mata Nacional dos Medos - Pinha de Pinheiro Manso
Os
pinhais são fartos em coelhos bravos e em lebres e é frequente verem-se grandes
rebanhos de cabras a pastorearem no restolho da mata.
Pelo
pinhal andam os aguadeiros por conta dos patrões ou a venderem água aos
trabalhadores individuais. Vão buscar a água aos poços e transportam-na em barris
de 50 litros em cima das cangalhas dos burros e quantas vezes às costas.
No
final da semana os homens regressados dos pinhais, cansados e sujos, e antes
mesmo de irem para suas casas, juntam-se nas tabernas, todos armados de varapau
onde, muitos deles, bebem vinho até caírem de bêbados. Outros envolvem-se em
valentes rixas que nem sempre acabavam da melhor forma. É ver o molho de
varapaus que são arrumados encostados a um canto das tabernas. Os “Margaridos”
são conhecidos pela sua conflitualidade e agressividade.
Saber mais: "Paisagem Protegida da Arriba Fóssil da Costa da Caparica", INN/PPAFCC, 2002; MENDES, Rui Manuel Mesquita, cita Actas, capítulos 9 e 10 das Cortes de Lisboa de 1645-1646, no reinado de D. João IV; LEITÃO,Nuno texto "A Floresta e os Florestais na História de Portugal (parte I)”; VASCONCELLOS, Luiz Mendes, panfleto, “do Sítio de Lisboa, 1608.
Saber mais: "Paisagem Protegida da Arriba Fóssil da Costa da Caparica", INN/PPAFCC, 2002; MENDES, Rui Manuel Mesquita, cita Actas, capítulos 9 e 10 das Cortes de Lisboa de 1645-1646, no reinado de D. João IV; LEITÃO,Nuno texto "A Floresta e os Florestais na História de Portugal (parte I)”; VASCONCELLOS, Luiz Mendes, panfleto, “do Sítio de Lisboa, 1608.
©
Victor Reis, 20110311 / 20180824, [Oficina das Ideias] [Histórias da História
da Charneca de Caparica] [RB Mata Nacional dos Medos] [20200706]
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